segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O futebol está morrendo

http://ondeacorujadorme.blogspot.com/2007/12/o-futebol-est-morrendo.html

Se há uma coisa bonita de se ver no jornalismo é um título que resume perfeitamente e com força o que diz a reportagem. Por isso, considero que "O esporte que vendeu sua alma", matéria da revista Piauí que descobri por meio do sempre brilhante blogue Impedimento, foi editada por alguém bastante competente.

A bela reportagem de Marcos Alvito mostra como funciona a máquina de ganhar dinheiro que é o futebol "inglês" e, graças aos deuses do futebol, que ainda existem focos de resistência a essa mercantilização da paixão. Jamais duvidei que a maioria dos ingleses fosse gente de bem.
Alvito, na verdade, realizou o meu sonho. Queria ter a chance e a grana de ir à Inglaterra apenas para assistir a jogos da Barclays (bah...) Premier League e ter mais subsídios para difamá-la neste espaço. O relato e a análise que ele faz em seis páginas (da internet) são mais ou menos o que todo mundo já sabia, mas vale a pena destacar alguns trechos.

Os clubes da primeira divisão não teriam necessidade, aparentemente, de cobrar tão caro pelos ingressos. Somente com direitos de transmissão das próximas três temporadas, os vinte clubes da divisão de futebol mais rica do planeta ganharão 2,7 bilhões de libras (cerca de 11 bilhões de reais). A isso se soma a venda de inúmeros produtos. Se não se consegue comprar ingresso para um jogo do Arsenal, é possível freqüentar uma das duas gigantescas lojas do clube. Na ausência de dribles, passes milimétricos e cabeçadas certeiras, há quem se contente com uma caneca vermelha, bolas de golfe com o símbolo do canhão, meias, chaveiros, almofadas, pijamas, canetas, balas, cadernos, chocolates, relógios e até camisas do Arsenal com o nome do torcedor gravado, a quase 200 reais cada uma.

Nota OCD: Ele está falando de torcedores ingleses, mas trago esse tema para cá. Para mim, está mais do que claro de que pelo menos metade dos brasileiros "apaixonados" por futebol europeu mal sabe a diferença entre um lateral-direito e um cabeça-de-área e talvez jamais tenha queimado o bumbum na arquibancada de concreto de um estádio num dia de sol rachando. Querem mesmo é camisas que brilham no escuro e outros apetrechos com "grife".
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Os ingressos aumentaram enormemente de preço: cerca de 300% nos sete anos iniciais da primeira divisão. A majoração não visou somente a melhorar os balanços financeiros dos clubes. Um dos seus objetivos era substituir os torcedores de origem operária por consumidores de classe média, excluindo os indesejados por meio de preços proibitivos. Era a transformação do futebol num ramo privilegiado da lucrativa indústria do entretenimento.

Nota OCD: É isso o que, devagarinho, estão tentando implantar no nosso futebol. Ingressos mais caros, afastando o povão e, junto com ele, um pouco da alegria e da espontaneidade dos estádios.
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Os novos estádios, exatamente como no modelo americano, tomam o nome das empresas que os financiaram ou, como se costuma dizer, dos patrocinadores do clube: Reebok Stadium (Bolton Wanderers), Ricoh Arena (Coventry City), Emirates Stadium (Arsenal), Kingston Communications Stadium (Hull City), Walkers Stadium (Leicester City) etc. Os campeonatos, devido à inevitável veiculação de notícias na mídia, agora também vendem seus nomes: a primeira divisão é Barclays Premier League e a segunda é chamada (com todos os cacoetes do marketing) de Coca-Cola Championship.

Nota OCD: Os clubes ganham dinheiro, os patrocinadores ganham visibilidade, o futebol perde seu folclore. Imaginem estádios com nomes de pizzarias, fábricas de refrigerante ou bancos multinacionais em detrimento de denominações como Boca do Lobo, Ilha das Cobras ou Índio Condá. Triste, não? Pra mim, não existe nome mais inapropriado para estádio no Brasil que o do Atlético Paranaense, mas que, infelizmente, é o modelo que todos querem seguir. Ah, e o nosso Brasileirão, quem sabe, um dia vai virar "Série A XPTO Corporation" ou algo do gênero.
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Dinheiro não tem alma e tampouco nacionalidade. Nove dos vinte clubes da primeira divisão têm proprietários estrangeiros.

Nota OCD: Já escrevi sobre isso.
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... o “Man U”, como é conhecido o time, tem dezenas de milhões de torcedores na China, no Japão, na Coréia. Ou seja, não é mais um clube, é uma multinacional do entretenimento.

Nota OCD: Ele e muitos outros clubes europeus (e agora os sul-americanos querem copiar o esquema, tentando atrair "torcedores" orientais cheios da grana). A diferença entre esses clubes e uma fábrica de absorventes, já disse, é apenas o modo como cada um ganha dinheiro.
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O apoio dos torcedores, o coração de qualquer clube, começa a faltar. Antes eles eram ligados ao clube local ou do bairro, já os novos adeptos querem torcer por um time vencedor, que compra craques no mercado mundial e aparece na televisão. É cada vez mais fácil ver crianças com as cores do Liverpool, do Arsenal e, principalmente, do Manchester United.

Nota OCD: Volto àquele primeiro parágrafo, trazendo novamente o tema para nossa realidade. O cara daqui que gosta de algum time estrangeiro geralmente não quer saber de nada sobre o clube, as origens, a história, apenas quer que ele tenha "grife". Nem precisa ganhar nada de relevante, desde que conte com um ídolo bem penteado e com cara de impávido colosso ou com um mico amestrado capaz de fazer piruetas circenses no meio do campo. E, claro, com uma camisa que brilhe no escuro (não pode faltar). A impressão que tenho é que os guris daqui - e, pelo relato do repórter, os de lá também - que se emocionam com futebol europeu acham que estão num videogame na vida real. Lá eu posso colocar quem eu quiser no meu time - não importa a nacionalidade ou o salário - e, se perder, aperto o reset e começo de novo. Por isso, "torço" para o Chelsea aqui, para o Milan lá e para o Barcelona acolá. Uma hora eu vou ganhar. E dane-se o Corinthians, o Internacional, o Avaí. Semideuses como Beckham e Rooney, jamais jogarão nesses times.
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Dentro dos novos estádios-shopping, muitas vezes o grito ou o canto dos torcedores é abafado pela música dos alto-falantes, no melhor estilo NBA. Os locutores procuram orquestrar e controlar as emoções dos torcedores. Estes são obrigados a torcer sentados, permanentemente vigiados pelos circuitos internos de televisão e por uma multidão de zelosos funcionários. Durante um jogo do Birmingham City contra o West Ham, um desses funcionários proibiu-me de tirar fotos com minha humilde e despretensiosa câmera fotográfica. A explicação: o espetáculo é propriedade do clube. E dele agora fazem parte os mascotes infantilóides, como bichos de pelúcia gigantes: leõezinhos, elefantinhos, cachorrinhos. À venda na loja do clube, é claro.

Nota OCD: Deus do céu, eles estão matando o futebol... O dia que eu vir isso no Brasil, passarei a acompanhar mais futsal e basquete.
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Embora visando unicamente ao lucro, os empresários do esporte americano sabem que o valor da sua mercadoria depende de algo chamado competição. O esporte é um negócio com certas especificidades. O historiador holandês Johan Huizinga lembrava, em seu Homo Ludens, que o feitiço despertado pelo jogo depende em grande parte da tensão proveniente da incerteza e do acaso. Exatamente para preservar o valor comercial do seu produto, os dirigentes do futebol americano buscaram garantir esse elemento essencial, tomando medidas concretas para evitar um desequilíbrio de poder financeiro entre as franquias. Diminuindo a incerteza, desaparece a magia do jogo. Por isso, desde o momento em que ligaram seu destino à televisão, eles estabeleceram que os recursos fossem igualmente divididos entre as equipes. Na década de 90, ainda com a mesma preocupação, fixaram um teto salarial, resolvendo, de uma só tacada, dois problemas: a escalada astronômica da remuneração e o possível desequilíbrio entre as equipes.

Nota OCD: Cada vez mais, acho que isso precisaria ter sido implantado no futebol. E é "precisaria" mesmo, porque agora não dá mais. Os clubes poderosos já estão poderosos demais. A década de 1990 e o início da de 2000 foram cruciais. Além disso, a graça hoje é torcer por um time que não perde. Jogos tensos, clássicos tensos, derrotas desgraçadas... vamos apagar tudo isso. Aperta o reset.
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Não é mais tudo pela vitória. Agora, é tudo pelo equilíbrio contábil.
Nota OCD: Esse aí poderia ser o subtítulo. Olha a fábrica de absorvente aí de novo...
(...)

A maior parte do público assiste ao jogo de pé, ao lado do campo, de onde dá para ouvir os jogadores reclamando do juiz, o técnico passando instruções e até as provocações entre os jogadores. Muito simpático. Aqui, o futebol parece ainda ter alma.


Nota OCD: Esse é o último parágrafo da matéria. Quase tão bom quanto o título. "O esporte que vendeu sua alma", aliás, poderia ser o epitáfio do futebol. Pelo menos do futebol inglês.

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