domingo, 22 de abril de 2007

Relembrando a Geral do Maracanã

Trivela, 17/novembro/2006 , por Rafael Martins: http://www.trivela.com/default.asp?pag=ExibirMateria&codMateria=2020&coluna=22

[...] Desde abril de 2005, ele vive sem o espaço onde, durante anos, investiu uma parcela de seu exíguo ordenado. A vitória do time, somente ela, podia pagar com juros as sacrificantes prestações. O despejo cruel foi, na verdade, o lance final de uma lenta agonia. Há muito, o trabalhador vidrado em futebol, freqüentador típico daqueles 13 degrauzinhos de cimento, já vinha sendo forçado a longos exílios e a incertezas desanimadoras.
Sem essa de picadeiro alternativo dos palhaços urbanos. A Geral do Maracanã sempre foi muito mais do que isso. A fantasia, a peruca e o cartaz vieram muito depois, quando as lentes da TV estimularam um folclore forjado, para burguês ver no Jornal Hoje. Essa nova faceta da Geral, fabricada pelas câmeras e pronta a satisfazer a sede de coisas grotescas que a mídia tem, vem sendo considerada a cara que o setor sempre teve, o que é um erro crasso. Na maior parte de sua existência, a Geral acolheu o povão que, separado do gramado por um fosso de 3 metros de largura e 3 de altura, gritava e esperneava pelo seu clube, sem se preocupar com possíveis closes. Bons tempos esses, nos quais a cultura da imagem ainda não havia esparramado seus pegajosos tentáculos.
A genuína cultura da Geral do Maracanã é bem diferente. Tem pouco a ver com circo, cédulas de um real ao vento e recadinho para o Galvão. É a cultura da relação visceral entre torcedor e time, da paixão que supera as adversidades (visibilidade ruim, conforto nulo etc), da interação com a partida, da cumplicidade com a emissora AM, do grito do fundo d’alma, que precisa ser ouvido. É a cultura do sujeito cuja disposição para o pesado batente de segunda-feira depende crucialmente do resultado do domingo. Está muito mais para os igualmente abolidos ‘terraces’ (ou ‘kops’) do futebol inglês – atrás das balizas, com torcedores em pé – do que para o desfile de figuras caricatas e exóticas de que a TV tanto gosta.
Nos ‘terraces’, também não havia assentos. Após o Relatório Taylor, que estipulou novas normas de estrutura e conduta para os estádios da Inglaterra, o proletariado foi desalojado das arenas futebolísticas, hoje remodeladas, providas de suntuosos camarotes executivos e voltadas para o consumo das elites. Trocando em miúdos: o hooliganismo foi o grande pretexto, a razão das mudanças, mas o dinheiro já estava mesmo esperando, sorrateiramente, a ocasião propícia para impor ao futebol britânico o seu valor. Com a Geral do Maracanã, ocorreu algo parecido: a desculpa para o seu longo abre-e-fecha, que culminou com o desaparecimento definitivo, pautou-se sempre na violência, embora a principal causa estivesse atrelada a interesses do mundo dos negócios.

O calvário

Bem antes das reformas para o Pan 2007, que rebaixaram o gramado em um metro e meio e trocaram a Geral por 18.000 cadeiras azuis, a falecida já apresentava sintomas graves. O primeiro baque foi o incidente do segundo jogo da final do Brasileiro de 1992, entre Flamengo e Botafogo. A mureta da arquibancada cedeu, provocando a queda de muitos torcedores rubro-negros. Três pessoas morreram e várias se feriram. Apesar de o desastre não ter envolvido a Geral, as conseqüências da tragédia respingaram por lá.
O campeonato carioca de 1992, disputado no segundo semestre, não teve Maracanã, interditado para obras. No mesmo ano, a FIFA decidiu que, em jogos internacionais, passariam a ser obrigatórios os assentos individuais, por questões de segurança. A deliberação da entidade (somada à triste lembrança das vítimas do Brasileiro) originou os primeiros maus augúrios em relação ao futuro da Geral. Em 1993, Romário fez dois gols, o Brasil derrotou o Uruguai e garantiu o tíquete para os EUA. No Maracanã, o público foi de 101.533 pagantes, distribuídos entre arquibancada e cadeiras. Um cenário bem distinto do de 4 anos antes, quando as duas seleções se digladiaram na final da Copa América. O gol havia sido assinalado pelo mesmo centroavante e o Brasil também tinha saído vitorioso, porém a Geral, entupida, férvida e pululante, dava outra feição ao espetáculo. O Romário de 1989 foi comemorar lá, junto com a massa em polvorosa. O de 1993 não pôde.
Em 1994, um Vasco x Flamengo, o único na vida de Dêner, foi o penúltimo clássico carioca a ter um público oficial de mais de 100.000 pagantes (o derradeiro seria o Fla-Flu do gol de barriga de Renato Gaúcho). No final do ano seguinte, a Geral seria fechada por tempo indeterminado, e por isso as platéias do Maracanã nunca mais superariam a marca. Coincidentemente ou não, 1995 foi o ano em que Kleber Leite assumiu a presidência do Flamengo. Sua empresa, a agência Klefer, do ramo de marketing esportivo, explorava as placas publicitárias do Maracanã, verdadeiras inimigas dos freqüentadores da Geral, e não apenas porque lhes prejudicava enormemente a visão. O aspecto colorido e irrequieto do setor mais popular do Maracanã representava, na visão propagandística, nada mais que um inconveniente adereço, um borrão incômodo.
Isso nunca foi confessado às claras. O próprio Kleber, quando tentava justificar o vazio da Geral nos jogos de seu clube, alegava razões econômicas – fechado um setor inteiro, reduziam-se as taxas do dispendioso Maracanã. Para tentar atenuar o desolamento do rubro-negro acostumado a pisar naquele concreto, o Flamengo adotava, nas cadeiras azuis, o preço módico da Geral. E foi assim que, durante muito tempo, a paisagem da Geral exibiu, durante as partidas, apenas uma ambulância, que também parecia estar lá muito mais para divulgar a marca de um plano de saúde do que para qualquer outro fim.
[...]
Para o Mundial de Clubes de 2000, foram feitas reformas nas arquibancadas: sobre os degraus de concreto, foram colocados assentos brancos, verdes e amarelos. Como se tratava de uma competição organizada pela FIFA, a Geral não tomou parte. Ficou ali, só olhando, parada, gelada, sem o alvoroço peculiar. [...]
Quase um ano depois do Mundial vencido pelo Corinthians, as grades de São Januário não suportaram a superlotação, e o segundo jogo da decisão da Copa João Havelange, entre Vasco e São Caetano, teve de ser cancelado. O que a Geral do Maracanã tinha a ver com isso? Nada. Contudo, foi novamente o Geraldino que perdeu seu sagrado território. Na época, a pressão por atitudes drásticas, capazes de resolver as mazelas dos estádios brasileiros, foi muito grande. Como a Geral do Maracanã e a outras gerais do país carregam a pecha de lugar violento e confuso, acabou sobrando para elas. O então ministro da justiça, José Gregori, mandou fechar todas. Foi para inglês ver. Em março, a Coréia do Beira-Rio (equivalente à Geral do Maraca) já havia sido reaberta. Meses depois, a Geral do Mineirão voltou a funcionar. No feriadão do início de novembro de 2001 – data, aliás, bem sugestiva –, foi a vez de a Geral do Maracanã ganhar nova chance.
Daí em diante, a Geral foi tentando, inutilmente, resistir à crueza da modernidade. Nos últimos tempos, poderia ter alterado seu nome para ‘Parcial’, já que somente determinados fragmentos de seus 500 metros de comprimento eram liberados para o torcedor – a fatia abaixo das cabines de rádio e TV, por exemplo. Como não atrapalhava as placas de publicidade e não estava próxima das torcidas organizadas, servia para ser a parte que ainda cabia ao Geraldino. Tudo indicava que aquela multidão espremida dos anos 70, que roía as unhas e coçava a testa à espera do gol redentor, nunca mais teria seu habitat natural resgatado.
E não teve mesmo. Em meados de 2005, tudo acabou. Ou melhor, nem tudo. Restou, para o acervo de memórias do futebol brasileiro, uma herança das mais nobres, deixada justamente por aquela que foi, sempre, o ‘point’ dos plebeus. Tchau, Geral.

Fenômeno mundial

Não é só a Geral do Maracanã que provoca saudades. As reformas do Beira-Rio prevêem o fim da Coréia, que também será lembrada com carinho. As ‘generales’ de La Bombonera deverão dar lugar a cadeiras, o que poderá subtrair uma parcela da efervescência do estádio e acarretará a diminuição de sua capacidade de 55 para 30 mil torcedores. Na Inglaterra, as viúvas dos ‘terraces’ reclamam do clima insosso dos campos da atualidade. Vejam o que diz Nick Hornby, no conhecido livro ‘Febre de Bola’, sobre a era romântica dos ‘terraces’: “Os torcedores temem que o fim da cultura dos ‘terraces’ signifique o fim do barulho, da atmosfera e de todas as coisas que tornam o futebol memorável”.
Em 2001, após um jogo contra o Dynamo Kiev, Roy Keane, capitão do Manchester United por anos e anos, achincalhou a torcida que comparece a Old Trafford: “Às vezes você fica pensando: eles entendem o jogo de futebol? Fora de casa nossos fãs são fantásticos, eu os chamaria de fãs ‘hardcore’. Mas em casa eles bebem alguns drinks e provavelmente comem os sanduíches de camarão, e não percebem o que está acontecendo em campo. Eu acho que algumas das pessoas que vêm a Old Trafford não sabem soletrar ‘futebol’, que dirá compreendê-lo.” Como se vê, os míticos ‘terraces’, ainda existentes nas divisões mais baixas do futebol inglês, não são cultuados à toa.
Um ótimo exemplo de que tradição e calor humano, de um lado, e sofisticação e segurança, do outro, talvez possam caminhar de braços dados é o Westfalenstadion, do Borussia Dortmund. A ‘Südtribühne” reúne 25.000 torcedores em pé a cada compromisso da Bundesliga, mas, nos jogos da UEFA ou da FIFA, o espaço se converte num conjunto de 10.500 cadeiras.

Algumas histórias da Geral do Maracanã são realmente inesquecíveis, como a do torcedor do Fluminense que invadiu o campo e correu em direção a Zico. Nada de agressão: o tricolor ajoelhou-se e implorou ao craque que o Flamengo não fizesse mais gols. [...]

- De todos os invasores de campo da existência do Maracanã, o mais comentado até hoje é o ladrilheiro Roberto Passos Pereira, torcedor da Geral que interrompeu a final Flamengo x Vasco de 1981, com o intuito de esfriar a reação cruzmaltina.

- O Vasco havia vencido as duas partidas anteriores, mas, como entrara na decisão com larga desvantagem, precisava de outro bom resultado no terceiro jogo. O Fla, no entanto, começou na frente, fazendo 2 a 0. O Vasco diminuiu aos 38 do segundo tempo e esquentou o jogo.

- Aí, entrou em cena o ladrilheiro, que virou herói para os flamenguistas. Para os vascaínos, ele é não apenas um sabotador, mas também peça de uma engenhosa armação. [...]

- Um ano e meio depois do fim da Geral, nota-se um crescente interesse dos meios acadêmico e artístico em decifrar os segredos do democrático setor do Maracanã.

- Bruno Mibielli, pesquisador da Universidade Federal Fluminense, é produtor, diretor e roteirista do documentário “Narrativas da Geral”, ainda sem previsão de lançamento.

- Conceitos como ‘topofilia’ – segundo John Bale, o sentimento de apreço por determinado lugar do estádio, como a Geral – e ‘pós-torcedor’ – de acordo com Richard Giulianotti, o espectador pós-moderno, provido de mais dinheiro mas sem tanta identificação com o clube – povoam os estudos acadêmicos acerca do comportamento nos estádios, nos dias atuais.

- A denominação ‘Geraldino’, que designa o freqüentador da Geral do Maracanã, foi criada pelo jornalista Washington Rodrigues. [...]

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