segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Jogo duro

São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2007

Treinador da seleção que encantou o mundo em 1982, mas não ganhou a Copa, Telê Santana sintetiza o avanço e o retrocesso da sociedade brasileira, diz psicanalista

MARCOS FLAMÍNIO PERES EDITOR DO MAIS!

N o técnico Telê Santana -bicampeão mundial com o São Paulo em 1992 e 93 e figura emblemática da seleção canarinho que encantou o mundo em 1982, mas não ganhou a Copa da Espanha-, o psicanalista Tales Ab'Saber identifica uma contradição latente, tanto no futebol quanto na sociedade brasileiros. A conclusão surgiu após dirigir, com Rubens Rewald, "Esperando Telê", trabalho de seleção de entrevistas dadas pelo técnico a órgãos de comunicação e que será exibido nos dias 22 e 29/8 no Centro Universitário Maria Antonia (tel. 0/ xx/11/ 3255-7182), em SP. Ab'Saber, que é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, diz na entrevista abaixo que Telê (1931-2006) representou uma evolução enorme no futebol brasileiro, ao defender o futebol arte e a lisura administrativa. Mas, ao mesmo tempo, reiterou a tradição conservadora brasileira ao declarar, literalmente, que "no futebol não há lugar para homossexuais". Esse avanço acompanhado de retrocesso seria o movimento dialético que nunca se cumpre na sociedade brasileira. O psicanalista desenvolve esse ponto de vista ao falar do recente "caso Richarlyson" [leia texto na outra pág.], e da auxiliar Ana Paula Oliveira, que, após ser severamente punida por um erro cometido em um jogo da Copa do Brasil, aceitou posar para a revista "Playboy", no mês passado. Para Ab'Saber, esse [uma revista masculina] deve ser o "lugar social objetificado das mulheres" na sociedade brasileira. Essa também é razão, acrescenta, para o fracasso contumaz do futebol feminino no Brasil, que, em contraste gritante com a versão masculina, não consegue nem sequer criar uma liga profissional -isso apesar da prata na Olimpíada de 2004 e do grande prestígio das jogadoras brasileiras nas ligas européias e norte-americana. "O futebol segue não-contaminado", diz Ab'Saber.

FOLHA - A decisão do juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, para quem "o futebol é jogo viril, varonil, não homossexual", revela um traço mental e subjacente poderoso da cultura e das instituições brasileiras, permeando todas as esferas do poder? Como funciona aqui a noção de micropoder de Foucault?

TALES AB'SABER - Creio que no Brasil, dado o tradicional espetáculo do crescimento da concentração de renda e, portanto, de poder, um conceito como esse de Foucault -que foi produzido em um mundo com longa tradição de cidadania e embates públicos relativamente eficazes- deve ser nuançado, para não dizer abandonado. Aqui há uma dimensão do poder autoritária, deslocada das necessidades sociais contemporâneas: podemos dizer que o poder opera longe -e talvez contra- a sociedade, enunciando o seu interesse particular como direito geral. Machado de Assis foi o primeiro a perceber essa ordem política moderna que não reconhece os parâmetros modernos das coisas. Tratar-se-ia mesmo de um poder grosso, um evidente macropoder, espalhafatoso e kitsch, como Glauber Rocha desenhou tão bem, descompromissado profundamente do sentido total de seus atos. No "caso Richarlyson", é visível a distorção em relação às aspirações sociais democráticas. A posição do poder em relação às aspirações contemporâneas, no caso, é grotesca. Creio que um senhor de escravos pensaria na mesma fase lógica a natureza dos direitos humanos e do corpo da sua propriedade. O escândalo é que essas forças se mantenham praticamente imunes ao processamento da história, funcionando abertamente contra todo princípio republicano real.
FOLHA - Mais que em qualquer outro esporte, a torcida em jogos de futebol costuma ofender juízes e jogadores adversários chamando-os de "veados". Isso é preconceito ou apenas folclore? O futebol é um esporte homofóbico?

AB'SABER - Do mesmo modo que o esporte é sublimação da agressividade humana direta na esfera da linguagem do corpo -e o futebol contém em si, transmutada como um objeto-sonho, a história da batalha épica e da vitória difícil e desejada na guerra-, me parece evidente que o futebol é também um campo sublimado da homossexualidade masculina, um destino cultural específico do aspecto bissexual do humano. Amigos gays, que nada entendem de futebol, perceberam a imensa carga de homoerotismo que o campo carrega quando viram "Esperando Telê". Como o futebol pode degenerar rapidamente em pancadaria -porque em sua origem ele é violência transformada em jogo, civilização-, ele também tem que expulsar constantemente o homossexual de si, porque ele é o amor dos homens pelos homens, transformado em jogo e em razão eficaz e estética na forma do gol. Mas usa um mecanismo paranóico e sádico contra o homossexual para livrar-se da constante ameaça da própria homossexualidade sublimada, mas sempre presente. O futebol é um mundo de homens entre homens; no cinema de um diretor como Howard Hawks [1896-1977], por exemplo, esse mundo era o do Oeste, da aventura e da guerra. Que a guerra e o homoerotismo sublimados no esporte deixem um resto paranóico homofóbico, regressivo, me parece um problema da política das pulsões e das possibilidades de um destino humano melhor de grande porte, que põe em xeque a própria forma da solução simbólica chamada futebol.
FOLHA - "Esperando Telê" se encerra com uma declaração do técnico contra a presença de homossexuais no futebol. No entanto ele foi um dos mais empenhados na profissionalização e lisura do futebol no país. O que esse paradoxo pode dizer sobre o Brasil?

AB'SABER - Rubens Rewald e eu discutimos bastante a natureza contraditória do personagem. Esse homem, que jogou com Didi contra Garrincha, tinha em Pelé um ideal técnico inatingível, um norte para os próprios times que montava. Ele se tornou personagem central no incrível futebol brasileiro dos anos 1970, foi o líder na derrota geopolítica mais importante na história do futebol contemporâneo, na Copa de 1982 [na Itália], e, no fim da vida, com o São Paulo, recuperou o seu lugar de gênio do esporte. Torna-se então uma voz dissonante, que lembra que a vitória se conquista com elevados padrões técnicos, éticos e inteligência estética, eficaz, contra um tecnicismo rebaixado e burro, razão instrumental degradada, que se generalizou não só no futebol mas no país. No meio dessa jornada civilizatória particular, de um homem conservador, a inacreditável posição: "Não há lugar no futebol para homossexuais". Para nós, Telê é um homem do seu mundo, o do futebol brasileiro clássico. Ele não é melhor do que o seu mundo... Ele é melhor em seu mundo. Embora ocupe um lugar paterno no mundo do esporte, sua posição discriminatória pública, embora no conteúdo seja exatamente a mesma, é em alguma medida diferente da de um juiz que deveria preservar a esfera universal de lei comum.
FOLHA - O jogador inglês Beckham anunciou nesta semana que irá interpretar um personagem gay no cinema. Isso seria possível no Brasil?

AB'SÁBER - Há ambivalências. Há outras dimensões democráticas potenciais populares em jogo. O espaço popular que envolve o futebol -e não o seu controle pela elite masculina tradicional- carrega ambigüidades humanas e sexuais muito mais ricas do que concebem aqueles que controlam política e economicamente o jogo. Em 1999, o grande volante Vampeta posou para uma revista gay. Isso foi motivo de chistes e alegria no mundo masculino do futebol, que teve nesse momento uma irônica intuição de si mesmo. Em nenhum momento o grande jogador que ele é foi questionado tecnicamente ou prejudicado profissionalmente. Ele foi o último convocado por Felipão, para a seleção campeã do mundo em 2002. Por outro lado, se os objetos do macropoder, os jogadores, exigem discriminação mais clara dos seus direitos, saindo do campo erótico ambíguo e conservador, então se produzem reações arcaicas profundas, como a que estamos vendo. Na velha tradição do poder brasileiro, resiste-se a estruturar os direitos do outro.
FOLHA - Por que, em contraste com os campeonatos de futebol masculinos, o futebol feminino no Brasil é, institucionalmente, um fracasso, mesmo a seleção nacional sendo uma das melhores do mundo. Você acha que, devido ao erro que cometeu, a bandeirinha Ana Paula Oliveira tenha sido "empurrada" para as funções a que o imaginário coletivo associa à imagem da mulher, ao aceitar posar nua para uma revista masculina?

AB'SABER - Acho que é isso. De boa fé, Ana Paula desejou ser uma mulher no forte mundo homoerótico dos homens. Ela não era homossexual, não desejava ser homem.Quando entrava em campo, como mulher, para fazer a função abstrata do trabalho de auxiliar, punha em risco a estrutura do pacto inconsciente do grande grupo dos homens -que amam um Pelé, que amam um Raí e um Romário, entidades eróticas disfarçadas e elevadas à eficácia racional do gol e da vitória.O grande grupo masculino só podia concebê-la como mulher no lugar em que ela terminou [na capa da revista "Playboy"], no lugar social objetificado das mulheres.

O futebol segue não-contaminado, as mulheres seguem controladas. Creio que esse é também o problema do lugar difícil do futebol feminino entre nós.Mas os dois exemplos, mais o de Richarlyson, mostram que há um processamento social transformador em curso: o futebol brasileiro -e sua política inconsciente de fundo- está sob ataque em todas as frentes.Por outro lado, a Justiça do macropoder e sua razão grotesca, que não condena homens brancos, ricos, católicos e homofóbicos, continua intocada e impune no Brasil .

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