Em "A Dança dos Deuses", o historiador da USP Hilário Franco Jr. discute a relação entre futebol e cultura
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA, Mais!, 12.08.07
A direção dos clubes, a contratação de jogadores famosos e as conquistas de títulos possibilitariam a eles [dirigentes] ascendência sobre as massas. E os jogadores, apesar de alguns bem remunerados e até mesmo com certo poder de intervenção em seus times, continuariam a ser matéria-prima para as articulações políticas que se processariam a partir de então." A citação, extraída de "A Dança dos Deuses - Futebol, Sociedade, Cultura" (Companhia das Letras, 472 págs., R$ 54), de Hilário Franco Jr., foi retirada de um trecho do livro em que o autor discute o futebol do Brasil nos anos 40. Poderia, contudo, servir como descrição permanente. Basta pensar nas recentes declarações do presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, a respeito do atacante Ronaldo durante a Copa de 2006, transferindo para o jogador uma responsabilidade que é dele mesmo em grau infinitamente maior. O problema é ainda mais grave se se levar em conta que o caos administrativo é sempre apoiado por governos e verbas públicas -que assim, entre outras coisas, corroboram a prática mais do que usual dos dirigentes esportivos de se perpetuarem no poder, em evidente conflito com uma das idéias centrais de qualquer processo democrático, a da alternância de comando. Um dos méritos da obra de Hilário Franco Jr. é mostrar com fartura de exemplos como os acontecimentos e mudanças do futebol no Brasil e no mundo estão intimamente ligados à história de cada período. Além disso, na segunda parte de sua obra, ele estuda a ligação do esporte com a sociologia, a psicologia, a antropologia, a religião e a linguagem, estabelecendo paralelos originais e inventivos. Na entrevista a seguir, o professor de história medieval da USP (tema que ele pretende continuar estudando, assim como o futebol) discute algumas dessas questões e também o recente "caso Richarlyson".
FOLHA - Com raras exceções, o futebol é muito pouco estudado e discutido no Brasil. Ainda que a situação esteja aos poucos se modificando, por que acontece isso com esse esporte tão evidentemente importante no cotidiano brasileiro?
HILÁRIO FRANCO JR. - Esse é um problema importante que mereceria ser aprofundado. De um lado, sem dúvida há preconceito de muitos intelectuais em relação a tal objeto de estudo, pretensamente menor. Se resolvi enfrentar esse preconceito, é porque me parece que todo tema de pesquisa é legítimo; o que pode ser menor é a maneira de tratá-lo. Um mau estudo não fica melhor porque é, digamos, de filosofia ou de física. Mas também existem, de outro lado, dificuldades que vêm exatamente da importância do futebol na sociedade brasileira. O excesso de informação sobre qualquer assunto acaba por anestesiar a capacidade reflexiva sobre ele. É o que vemos, por exemplo, com a corrupção e a violência. Esses casos são tantos, uma surpresa substitui outra, um choque supera outro, que não há tempo e equilíbrio emocional para o cidadão comum refletir sobre esses fenômenos. Algo semelhante ocorre em relação ao futebol. Somos todos tão inundados cotidianamente por informações sobre futebol na televisão, na internet, nas rádios, nas revistas, nos jornais que ficamos enredados em discussões sobre detalhes de uma partida, e não sobre o significado do jogo. A emoção que ele desperta também não facilita a reflexão, como mostram certos programas de debate no rádio e na TV.
FOLHA - Como o sr. analisa o caso Richarlyson, tanto do ponto de vista da celeuma que provocou no meio do futebol quanto no que diz respeito aos comentários do juiz que avaliou o caso?
FRANCO JR. - Creio que a celeuma em torno do Richarlyson reforça a tese que proponho no livro sobre o futebol como metáfora, síntese, da sociedade. Se, de um lado, o comentário do dirigente do Palmeiras trouxe à tona, de forma canhestra, um assunto ainda tabu não só no meio futebolístico, ele pode ser em parte creditado (o que explica, sem justificar) à rivalidade entre os clubes. O Palmeiras tentou há muitos meses contratar o referido jogador, que preferiu trabalhar no São Paulo. Muito mais absurda é a manifestação do juiz, que, sendo teoricamente neutro (o que não se espera de um dirigente do futebol) diante de partes discordantes, emite um juízo de valor longe da objetividade jurídica esperada. Se "futebol não é para homossexuais", a magistratura não é para preconceituosos. De toda forma, os dois personagens refletem uma visão que não é meramente pessoal. Não surpreende que o futebol, como em relação a tantos temas, tenha sido nesse episódio, mais uma vez, uma janela aberta sobre a sociedade. Surpreende o que se viu nessa fatia supostamente nobre da sociedade.
FOLHA - No decorrer das pesquisas para o livro, quais foram para o sr. os momentos de maior revelação, as percepções mais imprevistas?
FRANCO JR. - Para ser sincero, não foram poucos esses momentos. Uma coisa é ao longo do tempo ter se acumulado sobre o futebol uma série de observações, impressões, intuições, idéias trocadas com amigos. Outra é tentar sistematizar esses fragmentos e verificar que ainda faltam muitas peças para uma compreensão global do futebol enquanto fenômeno cultural. Respondendo objetivamente à pergunta, por exemplo foi prazeroso confirmar a intuição de que o desenvolvimento das regras e das táticas do futebol acompanham muito de perto a trajetória histórica da época observada. Para lembrar somente um caso, a tática concebida em 1874, que propunha ataque pelos lados do campo de jogo (o 2-3-5), se inspirou no que os prussianos tinham feito com sucesso nos campos de batalha em 1870-71. Também foi gratificante ter podido comprovar em detalhes, com dados históricos e antropológicos, o chavão de que o futebol é uma espécie de religião. Ou ainda formular a hipótese de ele ser também uma linguagem gestual, com morfologia, semântica, sintaxe e retórica próprias.
FOLHA - O sr. mostra no livro como o futebol esteve sempre muito próximo de uma idéia de construção da "nacionalidade brasileira". Ele cumpre assim, em outro âmbito, um projeto romântico que tem seu momento mais incisivo no movimento modernista. Na arte, contudo, ao mesmo tempo e depois, houve inúmeros "contramovimentos", enquanto no campo esportivo o fenômeno parece caminhar até hoje na mesma direção. Gostaria que o sr. comentasse esse contraste.
FRANCO JR. - As razões me parecem variadas, todas decorrentes do fato de as artes e o futebol terem estruturas diferentes. Do ponto de vista funcional, as regras das artes são muito mais complexas do que as do futebol, permitem um amplo leque de conteúdos e de soluções formais para eles. Do ponto de vista sociológico, as artes tendem a lidar com um público mais restrito, culturalmente mais bem equipado para solicitar e aceitar novos caminhos, novas propostas, enquanto o futebol, como a maioria dos fenômenos de massa, tende a ser mais conservador. Do ponto de vista emocional, o futebol, devido a seu caráter competitivo, alimenta rivalidades que as artes podem apenas registrar, não motivar. Do ponto de vista da produção, enquanto o artista cria solitariamente e apenas depois tem contato com a emoção popular que despertou, o futebolista recebe de imediato sinais de aprovação ou reprovação pelo seu trabalho. Simetricamente, do ponto de vista do consumo, o público é tocado de formas e em intensidades diferentes por uma pintura e uma partida de futebol. Se ambas mexem com os sentidos, com a emoção, a primeira está no domínio do material, do reproduzível, a segunda do efêmero, do inimitável.
FOLHA - Na segunda parte, o sr. discute de modos específicos o futebol a partir de algumas metáforas (sociológica, antropológica, religiosa, psicológica e, a mais original, lingüística). Qual dessas áreas merece maior aprofundamento por parte dos estudiosos do esporte?
FRANCO JR. - Se fizermos o balanço em termos de Brasil, encontraremos clara predominância de obras meramente descritivas, que têm valor memorialístico, mas por isso mesmo não alcançam os papéis e significados do futebol. No campo da análise, verificaremos que as abordagens sociológicas têm sido praticamente as únicas a receberem certa atenção. Todos os demais campos estão por explorar. Claro que aquilo que escrevemos em cada um desses capítulos pode dar origem a livros específicos, que desenvolvam a argumentação, ampliem a exemplificação, aprofundem (ou neguem) as hipóteses, refinem os conceitos. Quem sabe nessa fase em que o futebol brasileiro, de clubes e de seleção, entusiasma pouco possa receber menos manifestações acaloradas de aprovação ou de rejeição e mais estudos.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP).
segunda-feira, 13 de agosto de 2007
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