Edição 415 - carta capital - 20.05.2007
O PREÇO DA COPA
por Phydia de Athayde
A pretensão brasileira de sediar eventos esportivos mundiais é válida. Mas o histórico de corrupção e má gestão não inspira confiança alguma
Há goteiras na quadra, mofo nos banheiros. Refletores queimados, partes do teto dependuradas. Na grande final, um ar parado e quente, pois não há climatização no ginásio do Ibirapuera. Esse era o triste retrato do Mundial de Basquete Feminino realizado no Brasil, em setembro. Programado para acontecer na capital paulista e no Rio de Janeiro, o evento foi transferido integralmente para São Paulo por conta do atraso nas obras no Maracanãzinho (em reformas, para o Pan-Americano, a se realizar em 2007). A cidade de Barueri, na grande São Paulo, acabou por servir de sede improvisada. De maneira geral, o que se viu no Mundial foi decepcionante: fiasco de público, ineficiência na divulgação, confusão na venda de ingressos, dificuldade no acesso aos ginásios e timidez nas ações de marketing, entre outros detalhes. Na competição, o Brasil ficou com o quarto lugar, os Estados Unidos em terceiro. A Austrália venceu com méritos a Rússia na final. Depois da entrega das medalhas, o tubo que lançaria papel picado sobre as campeãs mundiais jorrava pouco e não acertou o alvo. As atletas pareciam não se importar e ainda foram premiadas com uma aparição da escola de samba Acadêmicos do Tucuruvi. Três passistas, quatro baianas e parcos integrantes da bateria esforçavam-se para animar o público. Entre pasmas e lisonjeadas, as australianas sorriam. Desfez-se a cena e, assim, fecharam-se as cortinas de um evento esportivo, mundial, realizado no Brasil. Preocupante.O vexame na organização do basquete pode até ser esquecido. Mas é bom que sirva de alerta para um país com ambições cada vez maiores, e compromissos à beira do colapso, quando o assunto é sediar grandes acontecimentos esportivos. Sim, Copa do Mundo e Jogos Pan-Americanos. Faltam apenas nove meses para o início dos XV Jogos Pan-Americanos, a ser realizados no Rio de Janeiro. Daqui a oito anos, conforme planeja a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o Brasil será sede da Copa de 2014. Não é pouca coisa.No dia 28 de setembro, o presidente da Fifa, Joseph Blatter, veio ao País encontrar-se com o presidente Lula para discutir como seria uma Copa no Brasil. O presidente da CBF, Ricardo Teixeira, presente no encontro, adiantou-se em dizer que a iniciativa privada ficará responsável pela construção de estádios. Duas semanas antes, Lula sancionara a Timemania, loteria que permite aos clubes brasileiros sanar dívidas que somam 1,2 bilhão de reais com a União. Na ocasião, Lula afirmou: Não temos nenhum estádio com condições de sediar jogos da Copa. Vamos ter de construir no mínimo 12 novos estádios neste país. Estava lançada a sorte.Enquanto isso, no Pan 2007... A responsabilidade pelo orçamento e andamento das obras foi, desde o princípio, dividida entre os governos federal, estadual e a prefeitura do Rio de Janeiro. A tática não se mostrou muito eficaz e o governo federal é que tem pago a conta. Incluindo a previsão do Orçamento de 2007, o total de recursos federais gastos com os jogos é de 1,439 bilhão de reais. Orlando Silva, ministro do Esporte, explica a CartaCapital: O governo do estado absteve-se e a prefeitura foi irresponsável, usou a situação como instrumento de proselitismo político. Também faltou consistência ao projeto do Pan. No limite, a responsabilidade é do governo federal. Previu-se que ele entraria com 17% dos gastos, hoje está em quase 50%. E é muito ruim o Pan acontecer sem sequer uma nova estação de metrô, por exemplo. Para uma Copa, temos de fazer diferente. O governo não será surpreendido.Cesar Maia, prefeito do Rio, retruca: Na nossa frente, o ministro se oferece. Por trás, ataca. É um bobalhão.A nove meses do início dos jogos, é cedo para dizer que não haverá mais surpresas. Boas ou ruins. A Riotur calcula que o Pan atraia 500 mil turistas para a cidade. O Comitê Olímpico Brasileiro (COB) espera que movimente 2 bilhões de reais, metade disso com patrocinadores. Seis empresas já fecharam acordos, a 10 milhões de reais cada, para associarem suas marcas ao Pan: Sadia, Kaiser, Caixa Econômica Federal, Olimpikus, Oi e Petrobras.Enquanto as previsões não se concretizam, há os fatos. O autódromo de Jacarepaguá está sendo transformado em um complexo com arena multiúso e parque aquático a custo de 200 milhões de reais. O traçado da pista foi alterado e, com isso, ela deixou de atender às recomendações da Federação Internacional de Automobilismo para receber eventos como a Fórmula 1. O Pan previa licitação para ceder a arena do autódromo a uma empresa. Ninguém se interessou. Na quarta-feira 4, o Comitê Executivo da Organização Desportiva Pan-Americana demonstrou grave preocupação com atrasos em três frentes. Na Marina da Glória, a Justiça proibiu obras de expansão porque a área é tombada pelo patrimônio histórico e não havia autorização especial para alterações. Os trabalhos de infra-estrutura viária na Vila Pan-Americana (hospedagem para todas as delegações) estão suspensos pela prefeitura carioca por suspeita de irregularidades nos contratos. No Maracanãzinho, tudo atrasou porque as obras necessárias são maiores do que as previstas.Atrasos e obras inacabadas saltam aos olhos, ao contrário de outras irregularidades. Em julho deste ano, o Tribunal de Contas da União pediu a abertura de um processo, à parte do que acompanha as obras do Pan, para que se investigue a liberação de 25 milhões de reais para o Comitê Organizador. A quantia foi paga pelo Ministério do Esporte e repassada, via comitê, para a construtora da Vila Pan-Americana, a Agenco, a pretexto de pagamento antecipado pelo uso das instalações durante os jogos. Há indícios de sobrepreço de 10,4 milhões de reais. Resumo: o Ministério pagou 25 milhões de reais por aluguéis que valem 14,6 milhões de reais (conforme laudo da Caixa Econômica Federal). Adiantados. Até agora, ficou por isso mesmo.Idealmente, o Pan-Americano no Rio de Janeiro deveria servir como preparo para a candidatura carioca às Olimpíadas de 2016, com a chance de que os Jogos promovessem o renascimento da cidade. Também idealmente, uma Copa do Mundo no Brasil deveria significar uma guinada do futebol brasileiro rumo ao profissionalismo. Em outras palavras, rumo à transparência da CBF, à lucratividade dos clubes e ao respeito ao torcedor. Entre a realidade e esses objetivos, um abismo. A discussão que envolve a realização de uma Copa no Brasil não se encerra nesta reportagem. Mas há pontos importantes, polêmicos, a serem tratados desde já.Um deles foi objeto de editorial no jornal Lance!, assinado por Walter de Mattos Júnior, proprietário da empresa. Ao anunciar que os estádios para uma Copa no Brasil serão erguidos com dinheiro privado, Ricardo Teixeira estaria blefando. O objetivo seria seduzir Lula e o Brasil com a proposta, para depois deixar o País refém da falta de investidores. A conta, mais uma vez, ficaria para o governo. Ou seja, para o País. Walter falou a CartaCapital: Sou a favor da Copa, mas com condições. O governo federal tem de impor regras, não pode ser cooptado para um projeto que não seja de interesse nacional. O projeto de interesse nacional não é o projeto da CBF.Nesse time também está o deputado federal Silvio Torres (PSDB/SP). Ele foi relator das CPIs da CBF-Nike e do Futebol, que cinco anos atrás investigaram a Confederação Brasileira de Futebol e pediram o indiciamento de Ricardo Teixeira por 13 crimes. Hoje, Teixeira tem uma condenação por sonegação fiscal. Recentemente, a Justiça Federal acatou mais duas denúncias do Ministério Público contra Teixeira com base nos resultados das CPIs. Torres defende a criação de um grupo com representantes de vários segmentos da sociedade para acompanhar, de perto, a movimentação financeira da organização de uma Copa: A CBF pode até ser a responsável institucionalmente, mas não pode agir sozinha, pois não tem estrutura para administrar assuntos relacionados a patrocínios e investidores. Ela dá prejuízo. Deixar essa responsabilidade com a CBF seria extremamente perigoso, dados os antecedentes dela e de seus aliados na administração do futebol brasileiro. Boa parte desses antecedentes, que incluem administração deficitária, submissão do calendário a interesses políticos e televisivos, evasão de divisas e corrupção de dirigentes de clubes e federações, está no livro CBF-Nike (Ed. Casa Amarela, 2001), de Aldo Rebelo e Silvio Torres. Baseado nas investigações da CPI, sua venda foi proibida por uma liminar da Justiça carioca, obtida por Ricardo Teixeira. A liminar nunca foi julgada.O assunto CBF inspira cuidados. O jornalista Juca Kfouri, notório crítico de Teixeira, é contra uma Copa no Brasil por não acreditar que se cumpram condições mínimas de transparência: Só seria possível com uma comissão independente, o que não será feito. Pelo contrário, colocarão o Pelé à frente, para que se faça de tudo sob a proteção da imagem dele. Será uma farra. Se construírem os estádios anunciados, serão 12 elefantes brancos tão logo termine a Copa. Defendo a reforma do Mineirão, do Pacaembu, do Maracanã... Não adianta querer mostrar ao mundo um país que não existe. Não adianta comer mortadela e arrotar caviar. Do jeito que está indo, é loucura! Durante toda a semana CartaCapital tentou, sem resposta, contato com a assessoria de imprensa da CBF através de seu e-mail oficial. Na terça-feira 10, falou por telefone com o assessor de imprensa da entidade, Rodrigo Paiva: ele informou que o presidente Ricardo Teixeira estava fora do Rio de Janeiro e não foi possível localizá-lo nem responder às perguntas da reportagem.Outro ponto é o temor de não haver investidores para bancar os estádios, justificado pela experiência mundial. Só se consegue dinheiro privado para arenas esportivas associadas a times e com previsão de receitas constantes. Na situação atual do futebol brasileiro, os clubes não oferecem segurança jurídica nem financeira para investidores. Contam-se em uma mão os clubes brasileiros de alguma forma interessados em profissionalizar sua administração. Entre eles estão o São Paulo F.C., o Internacional de Porto Alegre, o Botafogo e o Atlético Paranaense. Esse último é o único no País a ter optado por demolir seu antigo estádio para construir uma arena nos moldes da experiência internacional. Inaugurada em 1999, na capital paranaense, a Kyocera Arena é o mais moderno estádio da América Latina. Está dentro das normas da Fifa e, dentro dele, funciona um centro integrado de serviços, entretenimento e lazer. Desde 2004, a multinacional coreana repassa cerca de 4 milhões de reais por ano ao clube para ter seu nome associado ao estádio. Para efeito comparativo, o estádio do Atlético Paranaense está mais perto do exemplo positivo a ser seguido, enquanto o Maracanã é o exato oposto. No estádio mais tradicional do País e um dos principais palcos dos Jogos Pan-Americanos a situação é de abandono e descaso. Parte da infra-estrutura construída para o Pan já está em ruínas. Vândalos têm destruído sistematicamente as cadeiras de plástico antichamas e roubado peças de metal, madeira e até fios elétricos. O prejuízo está em cerca de 800 mil reais. Pano rápido.Na arena paranaense, o problema é de outra esfera. Ocorre que a estratégia chamada naming rights não surte o efeito desejado, já que a palavra Kyocera não é mencionada nas referências ao estádio durante as transmissões da Rede Globo. Os locutores dizem Arena da Baixada, e não Kyocera Arena, porque a multinacional não comprou cotas de patrocínio. A mesma atitude da emissora repete-se nas transmissões da Fórmula 1, nas quais as duas escuderias da Red Bull (também sem cotas na Globo) são tratadas por RBR e STR. Robert Fernandez, professor de pós-graduação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), de São Paulo, considera esse um problema vital a ser enfrentado pelos clubes que desejam fazer do futebol e de seus estádios um investimento viável. A questão do monopólio e poderio da tevê ante a fragilidade dos clubes é apontada por Walter de Mattos, do Lance!, como um problema estrutural do futebol: Hoje, a principal fonte de renda dos times vem dos direitos para a televisão. Tanto a CBF como a Globo lucram com os times fracos. Se eles tivessem uma gestão melhor, se tornariam negociadores mais competentes, e isso não interessa.No entender de Mauricio Sales, representante brasileiro da Amsterdam Arena, administradora do estádio usado pelo time do Ajax, na Holanda, a questão central é se um país como o Brasil é capaz de sustentar 12 estádios modernos após uma Copa do Mundo. Para uma arena gerar receita suficiente, ela precisa realizar mais de 70 eventos por ano, não apenas jogos de futebol. Nos grandes centros urbanos, diz, isso pode até acontecer, pois haveria uma demanda reprimida por acontecimentos como grandes shows. Ele alerta:O custo de um estádio hoje, no Brasil, é de 200 milhões de reais, sem contar as obras do entorno. Mas se a escolha do local do estádio seguir critérios políticos, e não mercadológicos, haverá problemas e prejuízo. Outro paradigma a ser enfrentado pelo futebol que sonha sediar uma Copa diz respeito à relação com o público. Hoje, a taxa média de ocupação dos estádios brasileiros é de apenas 20%, ante 77% no campeonato alemão de 2005. A diferença se explica porque, na Europa, os clubes se profissionalizaram há muito, ingressos custam caro e valem o preço. Segundo Fernandez, da ESPM, é fundamental modificar a experiência de ida a um estádio para atrair o consumidor com mais poder aquisitivo. No seu entender, o custo médio do ingresso em uma arena economicamente viável no Brasil seria de 50 reais.A discussão está aberta. Sales, da Amsterdam Arena, acredita que segmentação não precisa significar elitização. Seria possível oferecer desde camarotes luxuosos e exclusivos, mais caros, ao mesmo tempo que se mantenham áreas do estádio a preços mais baixos. Tudo é questão de adaptação, profissionalismo, compromisso. O ministro Orlando Silva planejou, para outubro, uma reunião com a empresa de consultoria Deloitte, que trabalhou na Copa da Alemanha e orienta a organização da Copa de 2010, na África do Sul. Antes disso, nas próximas semanas, Silva espera formalizar um grupo interministerial para mapear as necessidades de infra-estrutura, hotelaria, segurança pública etc., para começar a planejar o que seria a Copa no País. Ele se diz otimista: A Copa no Brasil terá a nossa cara. Será uma Copa brasileira. Ainda é cedo para dizer se serão feitos 12 estádios, pode haver reformas. Sabemos dos riscos e temos de nos cercar de seguranças. No limite, o governo tem de garantir que teremos as arenas. Uma Copa é uma grande oportunidade de coroar um novo modelo no futebol brasileiro. Esse é o desafio.Na visão de José Luiz Portella Pereira, secretário-executivo do Ministério do Esporte na gestão FHC, somente eventos esportivos estruturantes podem transformar o País:Comprometer-se com uma Copa ou Olimpíada cria um círculo virtuoso. Nesses casos, o governo federal é o principal financiador e tem de estabelecer governança cooperativa. Na Copa, se o governo submeter-se à CBF, será uma atitude comodista. Um erro total.Na África do Sul, palco da Copa 2010, os problemas já começaram. A demora para o início das obras nos estádios gerou críticas de Blatter ao Comitê Organizador do país. Apesar delas, os sul-africanos garantem as metas. Há cinco estádios para erguer e outros cinco para reformar, ao custo total estimado em 1 bilhão de dólares. De acordo com a BBC, mais de três vezes o valor imaginado em 2004, quando o país foi confirmado como sede. Por comparação, a Copa da Alemanha foi considerada um sucesso de organização, de empenho da sociedade e também de lucro. O Comitê Organizador e a Fifa declararam lucro de 135 milhões de euros (390 milhões de reais). O montante inicialmente previsto era de 100 milhões.Estima-se que 32 bilhões de telespectadores assistiram à Copa da Alemanha pela tevê. Apenas com os 21 patrocinadores oficiais, a Fifa arrecadou 800 milhões de dólares. Essas empresas investiram outro 1 bilhão de dólares em campanhas de publicidade e marketing com temas ligados à Copa.Alivia saber que corrupção no esporte não é exclusividade brasileira. Dois anos antes da Copa na Alemanha, estourou um escândalo de 2,8 milhões de euros de propinas em torno da construção da Allianz Arena, em Munique. A diferença, talvez, esteja no fato de que o presidente do 1860 Munique, seu filho e outros dois responsáveis pelas obras foram presos.Em termos de oportunidade e de desafio, o potencial de grandes eventos esportivos é enormemente transformador. Diante da realidade brasileira, torna-se também assustador. Pelo risco de negociatas impunes, rombos nos cofres públicos, fracassos organizacionais e, principalmente, da oportunidade perdida.
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