domingo, 4 de novembro de 2007

O futebol e suas razões de Estado

As relações entre o mundo político e o da bola sempre foram íntimas. Com a confirmação do Brasil como sede da Copa de 2014, ficam também mais perigosas

Flávia Tavares e Fred Melo Paiva

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O historiador e torcedor Hilário Franco Júnior está feliz da vida. Torcedor feliz, hoje, significa torcedor são-paulino. Hilário é são-paulino de verdade, daqueles de freqüentar estádio. Na quarta-feira passada, perdeu o jogo do título porque vive metade do ano na França. Até planejara a volta para aquele dia. Mas, com a Air France em greve (e o apagão aéreo na ativa), ficou em casa. Ele acordou de madrugada para ver na internet o placar da partida. Resultado: ficou feliz da vida.
O paulistano, de 59 anos, é um especialista em futebol. Desde 2003 ministra curso sobre a história social desse esporte para alunos de pós-graduação da Universidade São Paulo. Seu interesse pelo tema extrapola as quatro linhas e o limite dos estádios. A partir da análise do jogo e suas adjacências, Hilário trabalha em campos diversos, da sociologia à religião, da antropologia à lingüística. “O futebol é uma manifestação tribal, antropológica, de sociedades de todos os cantos do mundo há muito tempo”, diz. Ganhador de dois prêmios Jabuti - por A Eva Barbada (Edusp) e Cocanha (Companhia das Letras) -, é autor também de A Dança dos Deuses (Companhia da Letras), o fruto de seu mergulho no universo da bola.
Na França ninguém sabe que Hilário entende de futebol. Pesquisador da École des Hautes Études en Sciences Sociales, seu negócio, por lá, é história medieval. Trabalha com o maior especialista do mundo na matéria, Jacques Le Goff. Na semana em que o Brasil foi confirmado como sede da Copa de 2014, ele conversou pela primeira vez sobre a possibilidade de traduzir para o francês seu livro de futebol - é possível que, agora, mais gente se interesse pelos pontos de vista de alguém nascido na República do Futebol. Ou na meca do esporte, como sugeriu Michel Platini. “O Brasil está no mapa-múndi em boa parte graças ao futebol.”
De sua casa em Paris, Hilário Franco Júnior concedeu ao Aliás a seguinte entrevista:

O que o senhor achou da caravana de políticos brasileiros que foi a Zurique para ouvir a confirmação do Brasil como sede da Copa de 2014?
O futebol hoje é business, espetáculo e aparências. Essa caravana, embora desnecessária, faz parte dessa lógica. Desnecessária porque se sabia qual seria a revelação da Fifa, já que o Brasil era o único candidato para sediar a Copa. Mas justamente o fato de ser o único candidato esvaziava o impacto da oficialização. Para recuperar esse impacto, que interessa a muitos, montou-se essa cena toda.

A CPI do futebol apontou diversas irregularidades das entidades que comandam o esporte no Brasil. Mas os governos mantêm uma boa relação com elas . Por que há tanta tolerância com a corrupção no futebol?
Eu diria que pela mesma razão que nós toleramos o mensalão, a crise aérea, etc. O Brasil tem uma história de tolerância que países mais críticos não têm. Por ser o futebol um produto tão popular, os políticos tentam se aproximar dessa fonte de popularidade e não medem o grau ético do mundo dos cartolas.

O futebol continua servindo de trampolim para carreiras políticas?
Não da forma que servia há algumas décadas, quando dirigentes se elegiam para cargos públicos. Atualmente, há exceções como o Eurico Miranda (Vasco), o Roberto Dinamite (Vasco) e o Reinaldo (Atlético Mineiro). Mas essa aproximação não é mais tão direta e, por isso mesmo, ela é mais problemática - para não dizer mais perigosa. Isso porque essas alianças acontecem nos bastidores, em negociações escusas. Há indícios que nos permitem deduzir que o casamento política-futebol continua bastante forte.Isso se agrava com a confirmação da Copa 2014? A Copa pode ser positiva para o Brasil. Porém, a comparação com os Jogos Olímpicos de Barcelona, por exemplo, não procede. Afinal, a Olimpíada aconteceu em uma cidade e a Copa acontecerá no país inteiro - com pelo menos dez cidades-sede. Então, serão necessários aeroportos eficientes, uma rede rodoviária que funcione, uma rede ferroviária que exista, hotéis para todos os bolsos e bem distribuídos geograficamente. Se existem recursos para que essas coisas sejam feitas, por que elas não foram feitas antes? Se não existem, de onde eles virão? É aí que entra a relação com os políticos. Os governadores querem que seus Estados tenham uma cidade-sede para captar e gerir esses recursos e usufruir da infra-estrutura resultante do esforço pela Copa.

Concretamente, como a política pode atrapalhar a Copa?
Vou dar um exemplo prático. Em 1950, nós perdemos a Copa por vários motivos. Um deles foi a soberba. Mas os políticos tiveram um papel decisivo na derrota. A seleção estava concentrada em um hotel nos arredores do Rio de Janeiro, isolada. Na véspera do jogo, os políticos transferiram a seleção para a concentração do Vasco, no meio do Rio. A partir daí começou uma romaria de figurões à concentração. A Copa era em junho e as eleições viriam em outubro. Então, muitos vereadores, deputados e governadores queriam ser fotografados com os futuros campeões mundiais. No dia da final, acordaram os jogadores às 6 da manhã para ouvir blábláblá de um candidato qualquer. Foram dois dias sem sossego. Dá para tirar uma importante lição desse episódio. Poderíamos manter os políticos afastados da seleção, do começo ao fim da Copa.

Novamente, teremos eleições no Brasil em ano de Copa.
Isto é só uma infeliz coincidência. A Copa não seguiu uma seqüência fixa. Foi interrompida com a 2ª Guerra Mundial, por exemplo. E, no Brasil, já tivemos mandatos presidenciais de cinco anos.

Teria sido deselegante o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, responder à pergunta sobre violência no Brasil, feita por uma jornalista canadense, dando exemplos de violência em outros países?
Deselegante é pouco. Esse foi mais um rompante do autoritarismo que ele exerce. Se há uma pergunta que não agrada, use argumentos sobre sua casa. Mesmo porque perderemos em todas as comparações - a não ser a de número de títulos mundiais ganhos.

O que o senhor achou da ausência de Pelé na cerimônia da Fifa?
É, mais uma vez, uma combinação entre deselegância e autoritarismo. Se o Pelé estivesse lá, ele seria o centro das atenções. Espero que isso mude, que ele se envolva. É impensável que a Alemanha organize uma Copa sem que o Beckenbauer esteja à frente do evento. Ou que a França faça a sua sem o Platini.

Chegaremos a 2014 com a infra-estrutura necessária para a Copa?
Sou bastante cético. Espero me enganar, mas os dados históricos sobre comportamentos de instituições dão a entender que não. Nada disso muda da noite para o dia. Vai depender muito de quais pessoas estarão à frente desse projeto. Em sete anos, há uma rotatividade de governos. O que não vai mudar, certamente, é o comando da CBF.

Como o presidente da CBF se mantém no poder há tanto tempo?
O futebol é uma estrutura pouco democrática em todos os seus níveis. Tanto na Fifa quanto nas confederações nacionais, nas federações estaduais e nos clubes. Os presidentes de clubes, no cargo há anos, elegem os presidentes das federações estaduais, que, por sua vez, elegem o presidente da CBF. E os estatutos permitem a reeleição continuada. É quase um poder monárquico.

Não existe oposição?
Sim, existe. Mas sistemas pouco democráticos são tão fortes que conseguem cooptar ou abafar os oposicionistas. Na Copa de 2014, por exemplo, a CBF vai manobrar as federações estaduais com a possibilidade de um Estado ter ou não cidade-sede. A partir daí, veremos uma enorme troca de favores que reproduzirá o que acontece no Congresso brasileiro. A política do é-dando-que-se-recebe acaba por dizimar a oposição, que não consegue aliados suficientes para derrubar o poder instituído.

A Fifa é comparada à ONU quanto à abragência de seus filiados. Que poder ela tem para além do futebol?
A Fifa reúne 208 países e, portanto, movimenta direta e indiretamente bilhões de reais todo ano e envolve milhões de pessoas no mundo. Ela acaba sendo uma instituição que, embora voltada para um único esporte, tem um poder de influir em uma série de setores. A Fifa tem uma atuação mais ativa do que a da própria ONU, que tem um sistema interno razoavelmente democrático. Quando se percebe um absurdo qualquer em algum país, não se entra de um dia para o outro ali. Há um processo de discussões que acaba amarrando a ONU. A Fifa não tem nada de democrático. Por isso, ela tem agilidade para interferir no que lhe parece importante. Nesse paralelo, guardadas as proporções, sente-se mais no cotidiano das pessoas o papel da Fifa do que o da ONU.

A relação entre clubes e jogadores também é algo que beira a disciplina militar. Afinal, não há espaço para a democracia no futebol?
Há um grupo de países, do qual o Brasil faz parte, em que a gestão dos clubes não é democrática. As presidências dos times são passadas quase de pai para filho. Ficam sempre na mão do mesmo grupo. Não é casual o sucesso do São Paulo: além da boa administração, ele é um dos poucos clubes que têm uma democracia interna, com disputas eleitorais reais entre situação e oposição. Nos clubes de países mais democráticos, é um pouco diferente. Por exemplo, o Silvio Berlusconi pode até ser o “dono” do Milan, mas o clube tem ações cotadas em bolsa. Os proprietários minoritários têm instrumentos legais para intervir na empresa-clube se eles acharem que suas ações estão prejudicadas. Isso se reflete nos jogadores, que têm mais liberdade, porque são mais conscientes profissionalmente. Os clubes europeus não fazem concentração antes dos jogos. No Brasil, isso ainda é preciso.

De modo geral, as Copas mudaram radicalmente a infra-estrutura dos países onde foram realizadas?
Não. Há fatos pontuais. O belíssimo Estádio Centenário, no Uruguai, por exemplo, foi construído para a Copa de 1930. Só que o Uruguai tinha um altíssimo nível de vida naquela época. Países com uma situação mais sólida do que a nossa fizeram investimentos grandes, mas para melhorias específicas. A rede rodoviária alemã recebeu reparos para a Copa 2006, mas é de alta qualidade há 40 anos.

Quando sediamos a Copa de 1950, tivemos uma melhora significativa?
Não. Se em 1950 tivéssemos começado a construir metrô no Rio de Janeiro e em São Paulo, muita coisa hoje seria melhor. Nessa lógica, a Copa de 1950 não ajudou o desenvolvimento do Brasil. A vantagem que tínhamos é que os dois principais estádios do País, Pacaembu e Maracanã, eram novos. Agora, estão todos precisando de reformas drásticas. Em compensação, a decisão de que receberíamos a Copa de 1950 aconteceu em 1948. Desta vez, temos sete anos para nos preparar.

Ou para fazer bobagens.
Exatamente. O presidente da Fifa pediu que não fizéssemos a CPI do Corinthians para não atrapalhar a Copa. Atrapalhar em quê? Em dois anos, essa CPI se resolveria e não teria nada a ver com o evento. Um prazo longo pode servir de pretexto, tipicamente brasileiro, para empurrar as coisas com a barriga.

Por falar em CPI, não é estranho que o futebol puna aquele que vai à Justiça comum contra as decisões de suas entidades controladoras?
O futebol tomou uma dimensão que o levou a criar quase um mundo paralelo. Houve um choque muito importante com a decisão da Corte Suprema Européia no caso da Lei do Passe. Um jogador desconhecido de um time pequeno da Bélgica entrou na Justiça “comum” (uma terminologia pejorativa usada no mundo do futebol para definir a única justiça que existe) para dizer que se sentia cerceado em seu direito de trabalhar, já que o clube não queria negociar seu passe. Mas as instituições não têm coragem de ir à Justiça comum, porque correm o risco de ser desfiliadas da Fifa.

O futebol tem o poder de colocar países no mapa?
Sem dúvida. Se não fosse o futebol, acho que estaríamos excluídos de muitos mapas do mundo. Temos uma grande rivalidade com a Argentina, mas temos que admitir que os argentinos são melhores que os brasileiros em muitos planos - talvez só não o sejam no futebol. Claro que o Brasil é um país enorme e não seria ignorado. Porém, o futebol dá uma cidadania internacional a certos países que não têm direito a ela por vias, digamos, mais nobres. Países que não têm uma produção científica, uma história longa, uma contribuição reconhecida internacionalmente acabam aparecendo via futebol. As referências ao Brasil no exterior acontecem em momentos que têm a ver com o futebol ou tragédias.

O craque francês Michel Platini se referiu à Copa no Brasil como uma peregrinação a Meca.
Há um respeito enorme pelo futebol brasileiro. A principal publicação esportiva da França, a revista France Foot, fez, em sua mais recente edição, um dossiê sobre o Brasil. A capa traz estampada uma bandeira brasileira. Nas reportagens, há uma preocupação: eles dizem que o brasileiro é muito bom com a bola no pé, mas fora do campo, em sua organização, há problemas. Se tirarmos o futebol do Brasil, do que falariam sobre o País no exterior? Pontualmente, poderiam surgir alguns aspectos positivos, mas não são muitos.

Por que o orgulho que o brasileiro tem de seu futebol não contagia outras esferas do País, possivelmente melhorando outros aspectos?
Porque o futebol, por mais importante que seja, é um produto da sociedade. Não é a sociedade que é produto do futebol. Quando se tem uma sociedade bem estruturada, o futebol desperta esse nacionalismo de uma forma forte e saudável. A Alemanha tinha uma questão nacionalista muito reprimida, porque toda manifestação remete ao nazismo. Na Copa de 2006 isso foi recuperado, porque a seleção alemã, que começou desacreditada, embalou e a organização do evento foi excelente. O nacionalismo que estava abafado reapareceu a partir do futebol. Nós não temos esse perfil nacional. O nacionalismo brasileiro surge do nada perto da Copa e desaparece depois da Copa, tendo o Brasil ganhado ou perdido.

O músico e escritor José Miguel Wisnik tem uma teoria de que o futebol é a única área em que o jeitinho brasileiro, representado no drible, dá certo. O senhor concorda?
O jeitinho funciona numa representação social, que é o futebol. Mas isso levado para uma vida que pede um plano de organização e rigidez maior não funcionou até hoje e não sei se funcionará. Fora do campo, o que funciona é o estilo inglês e alemão. Pode ser feio para ver o futebol, mas é como a sociedade funciona melhor. As regras do futebol têm um paralelismo com as regras sociais, mas as sociais são mais complexas. A essência do futebol é enganar o outro. Como uma sociedade pode funcionar baseada nesse preceito?

No Brasil, duas das maiores manifestações populares - o carnaval e o futebol - são geridas por pessoas e entidades sob suspeita. O que isso revela sobre o caráter nacional?
Se o objetivo do futebol é enganar o outro, o do carnaval é criar uma ilusão de um mundo perfeito e sem normas por três dias. Tanto um quanto outro são representações do mundo real, mas levadas a um tal nível que acabam se descolando da realidade. Os políticos usam futebol e carnaval como instrumentos. Não podemos dar um diagnóstico fechado, mas, num país onde essas duas manifestações são os eventos mais importantes, isso dá uma pista, sim, sobre o caráter nacional. Somos muito bons na arte de representar e de enganar. O problema é que isso nos leva a mentir para nós mesmos e, assim, a não fazer um plano de nação.

Diz-se que o futebol, com seus uniformes, hinos, bandeiras e gritos de guerra guarda semelhança com uma manifestação fascista. O senhor concorda?
Na verdade, o futebol é uma manifestação tribal, antropológica, de sociedades de todo o mundo há muito tempo. Que esse tipo de manifestação tenha sido incorporado por um regime político X ou Y não pode desnaturar uma manifestação que é maior e mais antiga que esse regime. O fascismo, o nazismo, o stalinismo e até a ditadura brasileira recorreram a tudo isso, mas não por isso o futebol é um esporte de direita ou ditatorial.

Os times de futebol em dificuldade financeira devem ser ajudados pelo governo?
É preciso fazer alguma coisa, mas são as comunidades em questão que devem agir, e não toda a sociedade. Eu, cidadão brasileiro pagador de impostos, não vejo por que teria que pagar pelos desmandos que as diretorias de Flamengo ou Corinthians possam ter feito. Mas, se a comunidade flamenguista ou corintiana se organizar e se cotizar, será importante, porque são instituições que têm história.

O que se pode dizer da exportação dos nossos jogadores e da “obrigação” de que joguem no exterior para que sejam convocados pela seleção?
Eles não são obrigados a jogar no exterior para ser convocados. O caso é que os melhores jogam no exterior. Eles saem porque as propostas dos clubes europeus são atraentes demais para o jogador. Mas quem é esse jogador que vai jogar no exterior? São jovens como outros milhões que não têm oportunidades no Brasil e tentam uma vida melhor lá fora. A gente só percebe mais a ida desses jogadores por conta da profissão deles, que vive sob holofotes. Eles são um porcentual pequeno de jovens de mesmo perfil sociológico que deixam o Brasil para ser motoristas, carregadores, pizzaiolos. Não podemos cercear a liberdade de trabalho de quem tem o dom de jogar bola e deixar o que vai ser pizzaiolo ir embora.

Os brasileiros dão a mesma importância para a seleção que davam no passado?
O torcedor tem uma relação mais forte com o próprio time que com a seleção. Não só porque os jogadores atuam no exterior e não há identificação com o elenco da seleção. Mas, ao torcer por um time, você se identifica com um número menor de pessoas. As emoções ganham um gosto especial, porque você sabe que esse sentimento (de vitória ou derrota) é mais exclusivo, atinge menos pessoas, não o País inteiro. Além disso, a Copa do Mundo tem sete partidas e acontece a cada quatro anos.

O público nos estádios brasileiros passou por um longo período de baixa e agora se recupera. O que isso quer dizer?
O público demorou a se acostumar com o sistema de pontos corridos. No mata-mata, o que podia decidir um campeonato era o improviso e a sorte. O campeonato de pontos corridos exige planejamento. Ora, o brasileiro não tem o hábito de pensar no longo prazo. A organização nunca foi valorizada por nós. Se isso está dando certo no futebol, pode ser um indício positivo para a sociedade.

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