domingo, 4 de novembro de 2007

Passe livre

04/11 - 09h59

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Na última terça-feira em Zurique, na sede da Fifa, a delegação brasileira, tendo à frente o próprio presidente da República, reforçou mais uma vez os estereótipos sobre o Brasil. Foi um dia de Afonso Celso [1860-1938], o autor de "Por que Me Ufano do Meu País".

O Brasil foi apresentado como a terra do futebol; o "povo", como dócil, alegre e hospitaleiro, e, o país, cercado de belezas naturais. Só faltaram as mulatas sambando e rebolando ao som de uma bateria de escola de samba.

Lula teve mais uma oportunidade para viajar e discursar. Uma dúzia de governadores esteve presente. E ai de quem não fosse: seria considerado um traidor nacional. A transformação da candidatura brasileira em uma causa sagrada já tinha transformado a Copa -como seria dito na ditadura- em um objetivo estratégico nacional.Toda a mobilização visou a dar uma aparência de união nacional, suprapartidária, mesmo sem ter nenhum país concorrente: uma espécie de Batalha de Itararé.

Imagens de pontos turísticos, com algumas dezenas de pessoas exibidas na televisão, simulavam um interesse popular pela escolha. Simulavam, pois a imagem mais patética foi a do estádio do Morumbi vazio, sem viva alma.

A partir de agora começará a mais intensa campanha de propaganda do ufanismo nacional. Sete anos de "ame-o ou deixe-o". O coronel Octavio Costa, chefe da Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP) do governo Médici, uma espécie de mini-DIP criado pela ditadura militar, montou um grande operação de propaganda durante os preparativos para a Copa do Mundo de 1970.

Até a organização da comissão técnica da seleção brasileira teve interferência militar: do chefe da delegação aos preparadores físicos, onde pontificavam os capitães Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira. Mas a ação da AERP, seus slogans e marchinhas, será, como gosta de dizer Lula, "café pequeno".

O ufanismo -que esbarra no xenofobismo- deverá marcar os próximos anos. Lula fez questão de atacar os argentinos logo após a divulgação da escolha do Brasil de forma gratuita -numa ação "galvãobuenista".

Se começou assim, não será exagero imaginar um clima bélico em 2014.

Em 1950, quando foi organizada a Copa no Brasil, o clima do país era outro. Assim como em 2014, o evento ocorreu em pleno calendário eleitoral, que reconduziu, em janeiro de 1951, Getúlio Vargas à Presidência.

A grande obra pública foi a construção do Maracanã, em meio a acusações de corrupção. Estávamos caminhando para a democracia depois da ditadura do Estado Novo e de um governo ultraconservador, como foi a Presidência Dutra. Mas a seleção brasileira acabou perdendo a final.

Uma das acusações foi a de clima de "desordem", especialmente na véspera do jogo contra a seleção uruguaia. Vinte anos depois, a "ordem" militar foi elogiada pelos cronistas esportivos e até pelos jogadores, mesmo aqueles que buscaram reescrever o seu passado pessoal.

Os empresários brasileiros, que protestam contra a fabulosa carga tributária e os gastos excessivos e perdulários do governo, podem dar uma demonstração de que combinam o discurso com a ação.

Ou seja, diversamente do que ocorreu no Pan do Rio, quando os gastos governamentais superaram dez vezes as primeiras previsões -favorecendo grupos econômicos que tinham ligações preferenciais com os organizadores-, poderiam assumir a direção do evento e de todos os gastos, dando um exemplo de compromisso com o país.

E também de coerência com o discurso anti-estatista.No Brasil, iniciativa privada tem um curioso significado: a iniciativa é estatal, porém os lucros são privados.

A burguesia é muito dependente do Estado. Organizando a Copa pode dar seu grito de Independência.Como tudo no Brasil gira em torno do futebol, inclusive os exemplos e as metáforas do cotidiano e da política, a Copa de 2014 poderá ser a nossa revolução burguesa -e com um custo humano, social e material infinitamente menor do que as revoluções Francesa ou Inglesa.

O Terror, tal qual na França [1793-94], só existiria se [o jogador] Júnior Baiano fosse convocado como zagueiro central. Mas desse perigo, ao menos, estamos livres.
Fonte: Folha de São Paulo

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