domingo, 6 de abril de 2008

O urro das torcidas

+ Sociedade

PROFESSOR DE SOCIOLOGIA DO ESPORTE DISCUTE SOLUÇÕES PARA COMBATER A VIOLÊNCIA NOS ESTÁDIOS E COBRA "RESPONSABILIDADE MORAL" DOS CLUBES


Folha de São Paulo, domingo, 06 de abril de 2008
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Os clubes precisam se relacionar com o seu ambiente -prefeituras e associações civis-, em vez de focarem no marketing
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DO "LE MONDE"

O sociólogo francês Patrick Mignon, na entrevista abaixo, comenta a violência nos estádios de seu país, onde bandeiras racistas causaram escândalo no mundo esportivo -como em jogos do PSG (Paris Saint-Germain)-, e a compara com a de outros países europeus, como o Reino Unido e a Alemanha.
Professor e pesquisador na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), Mignon denuncia a tolerância com que arruaceiros e xenófobos são tratados.

PERGUNTA - Quem é o responsável pela segurança nos estádios? Os organizadores (a Federação Francesa de Futebol), a polícia?
PATRICK MIGNON - Os organizadores são os responsáveis pela segurança, mas as revistas são feitas pela polícia, pois só ela está habilitada a fazê-las quando é o caso de ir mais fundo. São responsabilidades diferentes.

PERGUNTA - É o caso de punir financeiramente ou mesmo dissolver as torcidas organizadas?
MIGNON - Há várias questões envolvidas. A primeira é saber a natureza do delito. Se há arruaça e violência, há um delito caracterizado: golpes e ferimentos. Se, além disso, há um ataque contra uma pessoa negra ou estrangeira, o delito é mais propriamente de natureza racista. Se uma bandeira faz referências explicitamente degradantes a uma categoria racial particular, também há um delito bem caracterizado. Um outro problema é saber quem deve ser punido, e como.
Depois de identificar os indivíduos que cometeram o ato, seria necessário ainda averiguar se, por exemplo, alguma torcida organizada esteve por trás de tudo, e só então buscar a punição adequada.
Na Inglaterra, o problema se põe de modo diferente. Lá, definiu-se o delito geral de "offence", que diz respeito a tudo que possa ter caráter ofensivo ou injurioso. O termo inglês é "abusive" e o significado é claro: um excesso que visa a degradação de outrem.
Definido o delito, seguiram-se as multas, as proibições. Não havia, na Inglaterra, torcidas organizadas como as que há na França, não havia torcidas organizadas a serem dissolvidas.

PERGUNTA - Esse tipo de proibição não é uma arma muito utilizada pelas autoridades francesas, em comparação com a Inglaterra. Por quê?
MIGNON - Há dois tipos de proibição: a judicial, proferida por um juiz, e a administrativa. A primeira pode ser bem mais longa, de vários anos até.
O problema é que ela pressupõe um procedimento judicial em que se devem exibir provas que justifiquem a sentença de proibição por vários anos.
A decisão administrativa é de ordem preventiva. Ela visa a distanciar dos estádios pessoas consideradas perigosas. Mas, por essa razão, ela é de curto prazo, pois não se baseia numa investigação, numa acumulação de provas.
A solução seria multiplicar as proibições judiciais, fundadas num processo legal, enquanto a decisão administrativa é necessariamente mais frágil do ponto de vista da legalidade.
Ao mesmo tempo, há mais um fator a acrescentar: mesmo no plano administrativo, há dificuldades ligadas à cooperação entre os diferentes serviços de polícia e à idéia de que certos indivíduos devem ser mantidos fora dos estádios durante a interdição administrativa.

PERGUNTA - Quais são os vínculos entre os clubes e os torcedores?
MIGNON - É uma questão interessante e difícil de responder.
1) Não há vínculo, pois em geral as organizadas se definem contra o clube, representam a oposição ao clube, no que diz respeito ao preço das entradas, ao calendário de partidas, ao comportamento da equipe etc.
2) Ao mesmo tempo, as torcidas são necessárias aos clubes. Por quê? Porque as torcidas radicais mobilizam um público importante, entusiasta e fiel. Para muitos clubes, as organizadas representam a torcida que mais apóia o time.
3) Essa importância que as organizadas foram adquirindo lhes deu algum poder político nos clubes. São um grupo de pressão que se manifesta por greves, manifestações de hostilidade ao treinador, aos jogadores, aos dirigentes etc.
Os clubes são forçados a ter relações de negociação ou de compromisso com esses grupos de torcedores.
4) Uma das conseqüências é que, em certos casos, os clubes sustentam financeiramente, por via direta ou não, essas torcidas, facilitando seus deslocamentos, auxiliando na realização de manifestações.
Esse é, ao mesmo tempo, um modo de manter relações não conflituosas com os torcedores.
Isso pode chegar a casos extremos, como em Marselha, onde Bernard Tapie, quando presidente do Olympique, entregou aos torcedores a gestão das entradas para as arquibancadas que eles ocupavam. Em Marselha, uma torcida radical recebe um certo volume de entradas para o ano inteiro e se encarrega de comercializá-lo.
Mas também pode acontecer, como parece ser o caso no PSG, que antigos hooligans montem empresas de segurança que vendem seus serviços para as partidas de futebol.

PERGUNTA - Sabe-se que a arquibancada Boulogne [no estádio Parc des Princes, em Paris] é a mais violenta e racista. Por que as autoridades não fazem nada a respeito?
MIGNON - Para começar, não é bem verdade, pois desde os anos 80 surgiram muitas leis para combater o racismo e a violência. Mas, vejamos, por que persistem os mesmos problemas? Por várias razões.
A primeira é que os atos violentos ou racistas não são realmente obra de toda a arquibancada. São obra de elementos que não devem passar de 3% ou 4%. Uma minoria.
A questão é como agir contra esses indivíduos. É preciso levantar provas, testemunhos, dar início a um processo etc. E nem todo mundo quer testemunhar e se ver envolvido num processo.
Por outro lado, às vezes parece preferível saber que as pessoas mais turbulentas e perigosas estão num lugar bem identificado, e não à solta. Em termos de controle, é preferível saber que os elementos perigosos estão no Parc des Princes do que deixá-los sair pela noite parisiense.
Finalmente, sucessivos dirigentes de clubes como o PSG fizeram erros de cálculo em relação a racistas e a hooligans, pensando que mais valia integrá-los à gestão dos torcedores, o que no final apenas prolongou o problema por muitos anos. Houve uma dose de tolerância. O problema parecia muito difícil de resolver.
A questão central, para um clube de futebol, é como arrecadar fundos para montar um time. Todos os outros problemas são complicados, ninguém sabe o que fazer e acaba por "deixar estar".
É preciso insistir: problemas dessa ordem precisam de soluções policiais, penais, na medida em que há delitos inaceitáveis; mas é igualmente necessário que os clubes e o mundo do futebol em geral se envolvam. E aí voltamos à idéia da responsabilidade social ou moral dos clubes diante do futebol e da sociedade.

PERGUNTA - Por que algumas torcidas são mais violentas que outras?
MIGNON - Vale para os torcedores o que vale para os indivíduos em geral. Há pessoas mais violentas que outras. Mas, se entendi bem a pergunta, a questão é: por que os torcedores de certos times têm a propensão a serem mais violentos.
A meu ver, há razões específicas para o que acontece em Paris e em Marselha. A primeira é que Marselha e Paris têm clubes com grande número de torcedores. São também clubes com forte competição interna entre os torcedores.
Em Paris, houve essa longa influência de elementos ativos de extrema direita e de grupos de hooligans.
Já em Marselha, há a idéia de que a cidade é um caso único na França, de que é uma cidade fora do território francês. E a violência que você menciona é particularmente presente entre as equipes de Marselha e Paris, mais do que entre Marselha e Bordeaux ou Marselha e Toulouse, por exemplo.
Em todos os clubes, há elementos mais violentos que outros, que preferem ser violentos a ser pacíficos. Às vezes por razões ideológicas, mas nem sempre.

PERGUNTA - O sr. fala de responsabilidade moral ou social dos clubes pelo comportamento de seus torcedores. Mas o que os clubes podem fazer de concreto para evitar esses excessos?
MIGNON - Há muitos anos preconizo a criação, no interior dos clubes, de departamentos voltados para os torcedores, cuja missão principal consistiria num trabalho permanente de relacionamento. Com uma dimensão de trabalho educativo, preventivo, como acontece na Alemanha.
Tudo isso para que um clube de futebol seja tanto um fator social e cultural de uma cidade ou região quanto uma empresa de espetáculos cuja meta essencial é rentabilizar investimentos. Os clubes precisam se relacionar com o seu ambiente, com as prefeituras, com as associações civis que trabalham para desenvolver as relações sociais e lutar contra o racismo.
Os clubes poderiam dar destaque a isso, em vez de focar no marketing. Há meios de combater os radicais. Mas a luta não seria fácil, porque se trata de torcedores poderosos.
Outro ponto importante, que já foi destacado: os radicais também têm responsabilidade social e moral. É perfeitamente normal que alguns elementos radicais tenham também idéias políticas.
Mas, na medida em que os radicais querem defender um futebol que seja popular, acho que deveriam ser bem mais atuantes na luta contra a violência e contra as formas de racismo e xenofobia.
Sobretudo, penso que, antes de demonstrar solidariedade para com outros torcedores radicais, os radicais deveriam se mostrar solidários com todas as pessoas que amam o futebol, que vão às partidas e que partilham dessa idéia de um futebol popular, sem racismo, xenofobia ou violência.
Digo isso porque há uma forte tendência, entre os radicais, a privilegiar a união entre radicais contra o mundo do futebol, o Estado, os torcedores não-radicais -quando se poderiam criar vínculos com as pessoas de boa vontade.

PERGUNTA - Deve-se seguir a Inglaterra e aumentar o preço das entradas para os jogos?
MIGNON - Do meu ponto de vista, não. Por duas razões. A primeira é de princípio. Acho que o futebol deve ser um esporte acessível a todos. Segunda razão: não acredito que a medida funcionaria na França, porque não sei se na França, em Paris, Marselha ou Lyon há pessoas fora dos estádios esperando uma chance de entrar. Na Inglaterra, é possível aumentar os preços porque há uma fila de espera. Não acho que estejamos na mesma situação.

PERGUNTA - O sr. não acha que a idéia de dissolver os Boulogne Boys [ala extremista da torcida do PSG] revela um total desconhecimento da situação parisiense? Não há o risco de repercussões perigosas?
MIGNON - O problema é o seguinte: uma organização como os Boulogne Boys, que não é exatamente agradável, que é muito ambígua em seu comportamento, propicia ao menos a vantagem de se reunir e atrair para uma mesma arquibancada indivíduos que, antes dela, se fragmentavam em pequenos grupos incontroláveis.
É uma das razões pelas quais, no esporte ou fora dele, pode ser difícil dissolver uma torcida constituída. Dito isso, gravitam em torno dos Boulogne Boys uma série de pessoas que estão ao mesmo tempo dentro e fora, com um pé na clandestinidade, e que, mesmo sem a organizada, continuariam a praticar a agitação e a transgressão de diversas leis.



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Tradução de Samuel Titan Jr.

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