terça-feira, 2 de março de 2010

Os sem-política

Folha de São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

Transformado em peça na máquina de consumo compulsivo, torcedor é vítima maior da despolitização que atinge a sociedade

LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assistência" foi um termo muito comum propagado pela imprensa esportiva até os anos 1930, condenando à passividade os torcedores mais populares. Estes se diferenciavam dos sócios, indivíduos notabilizados por laços mais estreitos, inclusive de parentesco, com os integrantes dos clubes.
A inauguração do estádio do Pacaembu, em São Paulo, e a transformação do futebol em evento de massa nos anos 40 redimensionaria os espetáculos futebolísticos e a importância dos torcedores.
Eles passaram a ser motivo de preocupação mais detida de parte dos poderes públicos, da imprensa e daqueles que organizavam os eventos, em virtude da intolerância e das rinhas que, diga-se de passagem, já existiam desde a época do amadorismo anterior aos anos 30. Os jornais não se cansavam de censurar as "desinteligências" frequentes promovidas pelo mau comportamento generalizado.

Faixas e cartazes
Foi nesse momento, então, que surgiram as primeiras organizações uniformizadas, indivíduos que acompanhavam as partidas em bloco, cantando, exibindo faixas e cartazes homenageando jogadores, cronistas esportivos e o próprio poder público.
Reciprocamente, a imprensa esportiva e os dirigentes dos clubes prestigiavam esses uniformizados por acreditarem que formavam um corpo elitizado (entenda-se "civilizado") no meio da massa.
Essa situação foi alterada com o aparecimento das torcidas organizadas, já no final dos anos 60.
Tratava-se de agrupamentos com nítida inspiração popular que se autonomizaram em relação aos interesses mais imediatos dos dirigentes e estabeleceram outros padrões para o ato de torcer.
Os ciclos de violência intensificados nos anos 90 e a ingerência cada vez maior da TV e dos canais pagos repercutiram na necessidade imposta por uma nova conduta torcedora.
Foi nessa conjuntura de políticas de repressão às organizadas que se inventaram os sócios-torcedores -analogia opaca que alude a uma espécie de acionista minoritário do clube- e o torcedor de poltrona, que paga para ver seu time pelo sistema pay-per-view, serviço oferecido pelos canais fechados (elitistas, não?).
Portanto, formas físicas ou simbólicas de violência não constituem um corpo necessariamente estranho dentro desse universo. Dirigentes que motivam os seus publicamente, ainda que de modo figurado, na lógica da contenda tendem cada vez mais a levar o espetáculo sacrificial para dentro da casa de cada torcedor plugado na web.
Há que saber administrar as formas da belicosidade que, de resto, é constitutiva do futebol. Assim como as organizadas não reproduzem toda a extensão do torcer, elas também não contêm todas as variáveis que explicam a violência tomada como linguagem de todos.
Ambientadas e nutridas nas dinâmicas de poder, as organizadas reproduzem os sucessos e fracassos das organizações sociais que conformam o que visualizamos por sociedade.
Nenhum destes aspectos lhes faltam: burocracia, hierarquias, lógicas de distinção, comprometimentos políticos com projetos coletivos próprios ou negociados com outros atores, discurso da parlamentarização das relações e, obviamente, violência instrumental nutrida por masculinidades hegemônicas, homofóbicas, e intolerâncias já esparramadas por toda a sociedade.

Vingança inconclusa
O problema não são as organizações em si. No geral, o comportamento belicoso e intolerante se manifesta de modo mais desgarrado, individualizante e descompromissado com qualquer projeto coletivo, descentralizando práticas e comportamentos que fogem em muito ao controle das elites torcedoras.
Como uma espécie de vingança inconclusa, as mortes se sucedem há décadas em nome de honras difusas em torno da adesão aos clubes. Elas certamente estão relacionadas ao desmonte da dimensão lúdica do jogo e ao esgarçamento da sociabilidade em uma sociedade armada.
Embora as imagens dos últimos acontecimentos mostrem hordas de torcedores se digladiando, não há guerra ali, não há cadeia mecânica de mando e obediência.
Essa é justamente a linguagem desgastada do poder que tem no fantasma da desordem unida a sua face oculta, mas companheira de todas as horas. Das instâncias policiais e judiciais espera-se apuração e indiciamento daqueles indivíduos que estiveram diretamente envolvidos nos confrontos generalizados.
Mas o que esperar daqueles que administram o futebol: os dirigentes de clubes, os políticos e as elites torcedoras? O cerne da questão parece residir na baixa qualidade das relações políticas travadas entre esses agentes. Não bastam reuniões administrativas para resolver a conduta torcedora neste ou naquele jogo em específico. A despolitização de longo prazo que se impinge aos torcedores só faz minar os investimentos coletivos em nome de outras violências instrumentais parciais, inclusive legais.
O desinvestimento orquestrado que se faz na cultura do torcer -transformada em mera coadjuvante da maquinaria do consumo compulsivo- também não colabora para o processo de cidadania esportiva, sobretudo às portas dos megaeventos que se avizinham por aí.

LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO é antropólogo e professor na Universidade Federal de São Carlos (SP). É organizador de "Visão de Jogo - Antropologia das Práticas Esportivas" (Terceiro Nome).

Nenhum comentário: