terça-feira, 2 de março de 2010

Torcidas-empresas

Folha de São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

Organizadas se converteram em lugares de negócios, valendo-se do marketing e do merchandising para competir com o material dos clubes

BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em caravana de apoio ao clube que contagiou o país no final dos anos 1970, o Corinthians Paulista, no seu drama de perseguição por um título depois de quase duas décadas de jejum, os Gaviões da Fiel distribuíam um folheto aos viajantes. O lembrete aos corintianos prescrevia: "Não corra, não mate e não morra".
O prospecto foi na época guardado pelo sociólogo Sérgio Miceli e consta da abertura de um dos primeiros artigos acadêmicos sobre o fenômeno das torcidas organizadas no Brasil. Em 1978, o texto foi publicado pela "Revista de Administração de Empresas", da Fundação Getúlio Vargas (RJ). Passadas mais de três décadas de sua publicação, o lembrete ainda ecoa como advertência, mas muito pouco de sua prudente recomendação parece ser hoje aplicável a determinados setores de torcidas organizadas.
Correr, matar e morrer tornaram-se verbos até certo ponto corriqueiros, atrativas palavras de ordem entre alguns adeptos dessas associações, como se pode observar nos incidentes fatais do último fim de semana, envolvendo torcedores de Palmeiras e São Paulo. As rodovias, as ferrovias ou quaisquer outros meios de acesso aos estádios são agora os locais privilegiados para o enfrentamento desses grupos.
Houve, de fato, uma mudança na dinâmica espacial dos confrontos entre torcidas organizadas. Se, até o final dos anos 80, as torcidas se confrontavam com mais frequência dentro dos estádios, a partir do decênio seguinte, a crescente vigilância em seu interior levou à sistematização das brigas para fora das arenas.
Desde então, a cada ano, o raio de ação da polícia nas imediações do estádio tem se alargado, criando uma espécie de segundo território de conflito. Este se afigura muito mais amplo e menos controlável em relação ao primeiro, o que coloca as forças da ordem diante de uma nova série de desafios a enfrentar.

Agonia
Conforme muitos estudiosos já assinalaram, a violência -bem como a busca por sua sublimação- é um componente agonístico liminar, constitutivo da sociedade e da atividade esportiva. Como tal, essa tensão, quer latente quer manifesta, está presente em um esporte popular como o futebol. No que diz respeito às torcidas organizadas, a especificidade de seus embates físicos é que ela assiste a ciclos violentos, verdadeiras "espirais" que fazem e desfazem vendetas ao sabor das gerações e das lideranças à frente dos grupos, com o efeito alarmante de difundir aquilo que na Europa se chamou de "pânico moral".
A cada nova tragédia, a sociedade é instada a se mobilizar e a expiar os seus "bodes". Quase sempre, a pedra de toque para a solução do problema recai na interdição das torcidas, por meio da simples extinção jurídica ou da proscrição dos "baderneiros".
Como se isso fosse apenas uma questão de norma -e não, principalmente, de costume-, os decretos vêm redundando em sucessivos fracassos.
Por que a situação é tão difícil de ser solucionada? Em parte, porque a aparente barbárie que evoca o comportamento violento das torcidas constitui apenas sua franja superficial.
Quando se discute o problema, pouco se atenta para o fato de que as torcidas organizadas não estão apenas na contramão dos princípios desportivos ou nos antípodas do futebol mercantilizado moderno. De forma homóloga à lógica dos clubes-empresas, as agremiações de torcedores se tornaram elas próprias torcidas-empresas. Orbitam em torno dos clubes -razão de existirem-, mas são também autônomas, com sedes, símbolos, legendas, cânticos e logotipos que traduzem uma identidade à parte.
Seguindo o etos comercial, as torcidas organizadas converteram-se em lugares de negócios, passando a se valer do marketing, do merchandising e da oferta de uma série de produtos ligados a suas grifes. Elas competem, assim, com o material dos clubes e atendem à demanda de seu público consumidor, adolescentes e jovens seduzidos pelo pertencimento a uma coletividade.
A expansão em âmbito nacional das torcidas acarreta ainda o recrutamento de mais simpatizantes, o que leva ao seu alargamento simbólico-territorial, à semiprofissionalização de seus quadros e à formação de uma complexa rede de relações sociais.
Nos primórdios do futebol, dizia-se que a prática esportiva era uma atividade intrinsecamente amadora, razão pela qual o jogador não podia ganhar dinheiro com o jogo.
No Brasil, foi preciso esperar até os anos 1930 para que tal formulação fosse refeita, com a adoção do profissionalismo no futebol e com a transformação do jogador em atleta profissional, capaz de auferir astronômicos salários. Talvez hoje nós estejamos, em meio à globalização do futebol, onde tudo se comercializa e se rentabiliza, assistindo a um debate moral não muito distinto.
Se o torcedor representa a quintessência da paixão futebolística, último bastião de um idealizado "amadorismo", até que ponto estaríamos dispostos a aceitar o fato de que o torcedor organizado pode fazer de sua atividade uma profissão legítima e legalizada?

BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA é pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (RJ).

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