terça-feira, 17 de abril de 2007

Hooligans: Mitos e Verdade

De: http://www.coxanautas.com.br/conteudo.phtml?ed=4&id=56:

Os administradores do site COXAnautas entrevistaram com exclusividade o Professor Doutor Clifford Stott, da Escola de Psicologia da Universidade de Liverpool, na Inglaterra. O Doutor Stott é um dos maiores especialistas sobre comportamento e psicologia em eventos de massa, sobretudo os atos de hostilidade e violência, definidos pela mídia como 'hooliganismo' (movimento dos hooligans, como são chamados os torcedores violentos na Europa).
É dele um estudo, elaborado em conjunto com outros dois especialistas em comportamento de massas da Universidade de Liverpool e da Academia de Polícia holandesa, denominado 'low profile', que obteve muito sucesso na Eurocopa 2004 e tornou-se referência pela Europa. O holandês Otto Adang e a alemã Martina Schreiber colaboraram com o Dr. Clifford Stott na elaboração de uma nova proposta de ação das forças policiais em eventos esportivos na Europa, sem o uso de ações ostensivas e violentas.Por e-mail, o Dr. Stott respondeu às perguntas da entrevista fazendo uma extensa abordagem sobre o assunto, comentando temas tidos por muitos como verdades e por outros como mitos, quando o assunto é a violência dos torcedores. Confira a entrevista exclusiva aqui no DOSSIÊ COXAnautas:

COXAnautas: Quais são os principais aspectos do sucesso do método “low profile”, no que se refere à segurança da torcida e das ações policiais em partidas de futebol?
Dr. Stott: Quando usamos o termo policiamento “low profile”, estamos essencialmente falando sobre formas não-confrontativas de policiar torcidas. Policiamento “high profile”, por sua vez, é quando a polícia tende a usar batalhões de choque e armas (como canhões de água) de formas bastante ostensivas. A polícia geralmente se utiliza disto para demonstrar sua capacidade de dominar a situação com força subjugadora; em outras palavras, para garantir a ordem por meio de intimidação. O problema dessa abordagem é que pode levar os torcedores a ver a polícia como uma ameaça desnecessária e, portanto, ilegítima. Também devido à abordagem “high profile”, quando a polícia vai de encontro a uma multidão, ela está muito mais propensa a se utilizar de força indiscriminada (por exemplo um ataque com cassetetes contra uma multidão como um todo, quando apenas uma minoria de torcedores está realmente fazendo algo errado). Esta ação é capaz de unir o que antes era uma multidão pacífica, contra aquilo que ela vê como uma ação ilegítima e, portanto, desencadear uma reação de violência em cadeia. De fato é esta combinação de percepção de ilegitimidade e união de uma torcida que consiste no fator central da dinâmica e psicologia de uma rebelião, não apenas no futebol, mas de um modo geral.O policiamento “low profile” também é capaz de intervenções à força, mas os batalhões de choque saem de cena, em um primeiro momento. Ao invés disso, policiais em uniformes normais (ou à paisana) são utilizados para interagir com os torcedores, monitorando a situação e levantando informações sobre quaisquer torcedores que estejam propensos a criar confusão. Esta abordagem “low profile” é eficiente porque a interação amigável com torcedores auxilia a construir uma idéia, entre a maioria dos torcedores, de que a polícia é amigável e não-confrontativa e, portanto, legítima para atuar como protetora dos cidadãos. Devido ao fato de os torcedores verem a polícia como entidade legítima, eles se tornam muito menos propensos a se envolverem em brigas e atos violentos contra policiais. Também, por estarem no meio dos torcedores, interagindo com eles, os policiais são mais capazes de entender precisamente o nível e fontes de risco durante eventos de massa. Sendo assim, se alguma intervenção utilizando força for necessária, eles podem agir rápida e diretamente naqueles torcedores que estiverem agindo de forma anti-social. Aqueles que nada fizeram, portanto, nada sofrem. Então, o policiamento “low profile” é eficiente porque administra a dinâmica dos acontecimentos em eventos de massa, de maneira a prevenir que a psicologia das rebeliões possa se desenvolver.
COXAnautas: Que situações podem ser apontadas como sendo de maior risco em uma partida de futebol? Seria a rivalidade, a ação policial ou as condições dos estádios?
Dr. Stott: Podem ser muitas coisas, mas o fator mais importante é a interação. Nós sabemos, por nossas pesquisas, que o risco não é devidamente entendido – ninguém realmente sabe o que vai ou não causar uma revolta, uma confusão. Mas, isto dito, nós também sabemos, a partir de nossas pesquisas, que confusões em eventos de massa são sempre associados à interação entre grupos. O padrão desta interação pode ter um tremendo impacto nos níveis de risco em determinadas situações. Então, o que nós argumentamos é que o gerenciamento efetivo das massas está concentrado em administrar os padrões de interação entre os grupos (torcidas organizadas etc.) dentro da multidão. Em se conseguindo isso, tem-se grandes chances de reduzir os níveis de risco presente em um evento de massa. Isto posto, o histórico da interação entre grupos rivais (incluindo torcedores e a própria polícia) exerce um importante papel.O problema é que mesmo este levantamento histórico pode levar a uma definição imprecisa de nível de risco. Por exemplo, o Manchester United jogou contra o Boavista na Cidade do Porto, em 2002. A última vez que os ingleses haviam jogado lá havia sido em 1997, quando ocorreu uma grande confusão (em conseqüência do mau policiamento). Portanto, a previsão era de risco alto, quando, na verdade, os torcedores do United apresentam baixo risco. Essa previsão equivocada pode acabar levando a uma reação exagerada por parte do policiamento. Por sorte, naquela ocasião não ocorreu nenhum incidente.
COXAnautas: Comparando-se as décadas de 1980, 1990 e 2000 o que mudou no futebol do Reino Unido, no que se refere ao comportamento violento dos torcedores?
Dr. Stott: Esta é uma pergunta difícil, pois não possuo muitas evidências do que acontecia nos anos 1980, no futebol inglês. Nós tivemos grandes desastres em estádios e eventos como Heysel e Hillsborough. Estes fatos realmente movimentaram grandes pacotes de mudanças nas administrações de estádios e torcidas. Por exemplo, hoje temos muito mais câmeras de vídeo nos estádios e a maioria dos grandes estádios têm assentos, e pede-se que as pessoas se sentem para assistir à partida. Isto ajudou a controlar a torcida e levou a uma mudança no comportamento dos torcedores nos estádios – por exemplo, é muito difícil para uma pessoa mudar de lugar no estádio -, mas fora dos estádios ainda existem constantes problemas de violência, e sem perspectivas plausíveis de serem resolvidos.
COXAnautas: Na sua opinião, quais as torcidas mais violentas da Europa? Existe alguma característica, inerente ou adquirida, que tenha levado a essa situação?
Dr. Stott: Pela minha experiência, devo dizer que os italianos são os torcedores mais violentos. Creio que existem diversas razões para isso, mas uma delas é que muitas das formas de regulação sobre as quais comentei acima, que já estão evidentes no Reino Unido, não existem na Itália. Mas também existem importantes aspectos sociais que podem ser delineados – por exemplo, a polícia (e os dirigentes encarregados do futebol e dos estádios) permitem que os torcedores italianos atirem objetos nos torcedores visitantes (como garrafas) e nada fazem para prevenir isso. Eu vi atitudes como essas levarem a retaliações dos torcedores ingleses e, ao invés de controlar a torcida italiana, a polícia local atacou com cassetetes os torcedores ingleses, vítimas num primeiro momento. Em conversa com policiais italianos, alguns me disseram que eles jamais iriam contra as torcidas organizadas italianas, pois isso levaria a tensões nas ruas que seriam ainda mais difíceis de administrar. Então, pude sentir que na Itália os torcedores violentos tomaram setores do estádio e podem atuar da maneira que quiserem, pois sabem que a polícia nada fará contra eles.De qualquer forma, penso que deveria ser um consenso que é improdutivo tentar relacionar a violência a grupos predeterminados (poloneses são mais ou menos violentos que alemães, e assim por diante). Isso realmente tira o foco do fato que a violência é resultado de situações e relações sociais, e aspectos psicológicos dentro destas situações. Então, os processos que levam à violência, ocorrem (ou podem ocorrer) em todas as sociedades.
COXAnautas: Quais são as principais diferenças no comportamento violento de torcidas em partidas internacionais e clássicos locais?
Dr. Stott: Penso que as diferenças centrais residem na história e na organização, mas também na compreensão cultural. Nas ligas domésticas, os times jogam entre si todo ano e os grupos de hooligans têm um nível de organização e história que não se vê em partidas internacionais. Deste modo, em partidas entre times locais, as torcidas organizadas podem se confrontar entre si e o histórico dessas brigas alimenta mitos sobre o poder e a posição de uma torcida em relação à outra. Em partidas internacionais, esse nível de organização é menos evidente. A violência aqui (na Inglaterra) é mais freqüente quando torcidas locais respondem a esse mito dos ingleses como hooligans e os enfrentam para ganhar status local ou em confrontos com a polícia, por policiamento hostil (ou “high profile”), sobretudo porque a polícia interpreta comportamentos corriqueiros dos torcedores como hooliganismo (por exemplo, reunirem-se para beber em grandes grupos).
COXAnautas: Existe algum fator específico que possa explicar por que a década de 90 ficou caracterizada como a “década negra” do hooliganismo inglês, holandês e alemão?
Dr. Stott: Eu não sabia que esta havia sido a “década negra”. De que maneira ela foi “negra”? Seria por ter sido registrado um maior número de incidentes do que as décadas anteriores? Basicamente, eu creio que existem muitos mitos e argumentos sensacionalistas, no que se refere ao hooliganismo no futebol. Essa má-compreensão é muito negativa. Penso que devemos nos afastar de termos que se concentram em moralismos, como “década negra”. Nosso trabalho não é propriamente julgar o certo e o errado, mas sim compreender os processos pelos quais a violência se desenvolve. Devemos buscar uma linguagem que nos auxilie a desenvolver uma compreensão precisa do que está acontecendo. Apenas quando entendemos um problema é que podemos encontrar uma solução para ele. Então, vamos identificar o que está acontecendo agora e tentar ignorar aquilo que só podemos entender pelos olhos das “histórias” contadas por outras pessoas – que eu francamente penso que sejam usualmente imprecisas.
COXAnautas: Atualmente, torcedores de Rússia, Croácia, Sérvia, Hungria, República Checa e Polônia, países do Leste Europeu, têm apresentado comportamentos muito violentos. Isso é uma conseqüência de algum fator específico ou apenas um reflexo do maior alcance da mídia hoje em dia, após a queda da ex-União Soviética?
Dr. Stott: Como eu digo, existe uma grande falta de representatividade em torno da violência no futebol, mas não podemos perder de vista o fato de que torcidas de futebol são um ambiente para aqueles que são teoricamente “fracos” ganharem poder e identidade e, por meio disto, lutar contra aquilo que vêem como uma autoridade injusta e ilegítima. Devemos também lembrar que a violência no futebol é uma útil ferramenta política. Se uma sociedade consegue construir a idéia de que esse tipo de violência é um sério problema social, isso pode gerar uma mobilização política que conduza a policiamentos reacionários e legislações que levam à perda de liberdades individuais. No Reino Unido, a porcentagem de prisões relacionadas ao futebol (o que inclui ofensas violentas e não-violentas) responde por apenas 0,001% do total de pessoas que vão aos estádios. Então, isso significa que o futebol é, na verdade, um dos aspectos menos violentos na sociedade britânica. Isto, é claro, não se coaduna com os mitos nos quais as pessoas acreditam sobre futebol. Por outro lado, acredito que esses mitos criados pela mídia servem a objetivos políticos e, por isso, sobrevivem mesmo diante de fatos inegáveis (como estatísticas, por exemplo). Também é importante reconhecer que a violência organizada pode ser útil para as próprias organizações políticas e penais – pois se você conseguir recrutar e controlar a violência organizada, poderá utilizar as gangues (ou torcidas organizadas) para desenvolver posteriores projetos políticos e criminais no seio da sociedade. Todos esses aspectos devem ser tratados quando se discute a violência no futebol – concentrar-se em apenas um fator seria mascarar a verdade.
COXAnautas: Na sua opinião, sem vontade política do governo, é possível que apenas os clubes e as torcidas consigam se organizar, no sentido de reduzir a violência?
Dr. Stott: Sim, no meu trabalho na Inglaterra e no País de Gales, uma das coisas que descobri é que, onde clubes e torcidas se preocupam ativamente com o problema da violência, suas ações podem ter um forte impacto. Na verdade, eu diria que é da própria responsabilidade de clubes e torcedores fazê-lo, pois o problema só é solucionado quando as comunidades começam a se auto-policiar. A responsabilidade da polícia e do governo é criar as circunstâncias onde o auto-policiamento pode se desenvolver. De qualquer modo, sem apoio político do governo, pode acabar sendo muito difícil alcançar esse objetivo, pois obter o apoio de torcedores pode ser muito complicado em situações nas quais a legislação, além de não ajudar, impõe empecilhos.
COXAnautas: Na Itália, rivalidades políticas comumente atingem as torcidas. Quais fatores contribuíram para que isso alcançasse a atual dimensão, gerando violência e discriminação racial, como no caso dos “Irriducibilis”, torcida da Lazio?
Dr. Stott: Só posso especular sobre esse tema. Todos sabemos que existe corrupção no futebol italiano. Existem também artigos que falam sobre a autonomia e o poder que as torcidas têm na Itália. E é provável que exista uma certa relação entre tais artigos. De qualquer forma, eu não respeito qualquer grupo de torcedores que venham a apoiar um líder genocida (nota: o entrevistado se refere a Benito Mussolini, ditador fascista italiano que conduziu o país na II Guerra Mundial e que é venerado pela torcida da Lazio) e só posso esperar que um dia os torcedores italianos, a polícia e os dirigentes façam algo para banir tais grupos.
COXAnautas: As torcidas de Cardiff City, Stroke City e Leeds United têm demonstrado altos índices de violência em estádios britânicos, maiores até que os de torcidas de clubes londrinos. Existe alguma particularidade comum a essas três torcidas que possam levar a tal comportamento violento?
Dr. Stott: Tenho realizado um estudo sobre os torcedores do Cardiff nos últimos dois anos. Os níveis e as causas da violência envolvendo essa torcida são complexos. Mas um dos aspectos é a forma de policiamento pela qual a torcida do Cardiff passa. O que acontece com a torcida do Cardiff é similar ao que acontece com a torcida inglesa, de um modo geral, quando viaja para jogos fora de casa. Essencialmente, a torcida do Cardiff é policiada de uma maneira ostensiva (“high profile”) e pesada, por causa de sua fama de violenta. Mas, como eu expliquei, essas formas de policiamento acabam tendo o efeito de criar condições para o desencadeamento da violência. Tenho trabalhado com torcedores no próprio clube, visando mudar a forma de policiamento. Se conseguirmos fazer isso, penso que mudaremos a imagem da torcida e o Cardiff não estará mais entre esses times cujas torcidas são tidas como violentas.
COXAnautas: Existem diferenças substanciais entre o comportamento dos torcedores de Inglaterra, País de Gales, Escócia, Irlanda e Irlanda do Norte (países que compõem a Grã-Bretanha)? Pois no Brasil a imprensa geralmente noticia mais incidentes envolvendo torcedores ingleses.
Dr. Stott: Sim, existem diferenças. As torcidas têm tamanhos diferentes, por exemplo. Na Escócia, a violência no futebol está ligada à rivalidade religiosa da Irlanda em relação aos escoceses. Entretanto, não é surpresa saber que a mídia estrangeira tenha uma obsessão com relação à violência dos torcedores ingleses. Mas eu me pergunto: por que isso? Será que isso ajuda a desviar a atenção de falhas governamentais em combater a violência e a corrupção dentro de sua própria sociedade? Por que essa mídia não foca no papel da polícia nesses incidentes? Esse é o tipo de indagação que devemos aventar na próxima vez que ouvirmos algo sobre o “grande problema” dos ingleses e sua “violência” no futebol.

Um comentário:

Leonardo Lovo disse...

Essa matéria, apesar de extensa, é MUITO interessante e mostra a diferença cultural marcante entre o Brasil e a Inglaterra. Os ingleses têm uma noção mais apurada do trato com os torcedores e se dedicam a isso com afinco.

O Dr. Stott é um pesquisador que tem contribuído intensamente neste sentido e eu deixo meus parabéns a ele pelas respostas dadas na entrevista aos COXAnautas!