domingo, 4 de novembro de 2007

Torcida lusitana

4/11/2007

Curiosos costumes portugueses se revelam em meio a palavrões da torcida na Reboleira, um pequeno estádio de futebol

http://www.correiodabahia.com.br/reporter/noticia.asp?codigo=140624

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O metrô é novo, será uma prévia do quase similar e interminável soteropolitano? “Para sua segurança, esta carruagem dispõe de videovigilância”, informa o adesivo na parede do veículo. Baldeia-se na estação próxima e, em seguida, toma-se um autocarro, o 746, nas portas de Benfica, subúrbio lisboeta. Um eurinho e trinta cêntimos, mas o chofer informa que o estádio não é próximo dali, do ponto final. “Escolha um táxi ou um comboio, poisch”. Esqueça-se o trem, falta um quarto de hora para começar o embate. Puxa-se papo com o novo chofer, cigarro aceso no canto da boca, duas respostas monossilabicamente balbuciadas são suficientes.
Refletores acesos, alguns de vermelho correm na rua, chegamos. Foi rápido, mais três e setenta e cinco da fortíssima moeda. Mas não há Kombi do reggae, Parangolé nas alturas nem a Bamor. Policiamento reforçado apesar do pequeno interesse. Um representante do clube da casa, entusiasmado em receber o grande da capital, informa, com um sorriso no rosto, ao perceber o sotaque brasileiro: “Se ficares atrás da baliza, estarás com os do Benfica; desse lado, temos os nossos, do Estrela. No meio, ficará com os de ambas as preferências”. A última opção. E lá se vão 20 euros, arquibancada superior, apenas cinco a mais do que o ingresso mais barato.
Já dentro do estádio, antes da segunda e última roleta, a rapariga ao lado é abordada. A pefém pede para abrir a bolsa. “Não podes”, aponta para o batom. “Ou jogas fora ou pões ali por sua conta e risco” e indica o parapeito de uma janela. Lá já estão espelhinhos e outros importantes equipamentos femininos para maquiagem. A aproximação é inevitável. “Por que ela não pode entrar com isso?” “São objetosxch de arremesso. Tambaem não são permitidas máquinas fotográficas. Agora, se perguntares por que podem telemóveis, não sei”, responde a bela e esperta portuguesa fardada, ajeitando o quepe.
O jogo começa. Mas, antes, há uma cantina. Cerveja. Sem álcool. Venha, então, Coca-cola, um euro, um saco de batata fritas, outro euro. Estamos na Reboleira, o pequeno campo do Estrela Amadora, ou Estrela Amadoira. Recebe o Benfica, o mais popular do país, o que tem mais adeptos no mundo. Uma espécie de Redenção x Bahia, em um estádio no final de linha de Brotas, analogia soteropolitana. É a Carlsberg Cup, uma Copa do Brasil de Portugal, que envolve clubes de várias divisões do país, patrocinada por uma cervejaria.
O Estrela começa melhor. Mas a torcida do Benfica – conhecida como encarnada, devido à cor vermelha da camisa do clube adorado – canta sem parar. “Oi, oi, oi, bota Benfica dentro do golo”. A do Estrela tem nove gajos, é a Magia Tricolor. Há uma faixa. “Força, rapazes”. Uma família está ao lado, vó e netos, inclusive. Ela reclama com a vendedora de cachecol. “Se ficares de pé aí os miúdos não verão o jogo”. Dezesseis graus, as vendas são mínimas.
Outro ambulante. Vende queijadinhas. Três euros se vão. A iguaria é como o jogo, sem sal. Miguelito erra um passe. “Vai, pôra, vai pôra”, grita um senhor, no primeiro palavrão da noite, dos fraquinhos, aos 18 minutos da primeira parte. O lateral-esquerdo do Benfica está sempre por ali e é o personagem. “Sobe, pá. Sobe, pá”. Sem praticamente pronunciar a última sílaba do verbo na terceira pessoa no presente do indicativo, quase um bê mudo, sopa, sopa, sopa é o que se ouve. E tome sopa, sopa, sopa para Miguelito.
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E Bruno Assis é o meia que não acerta nada. “Bruno Assis, vai pra casa, pá!”. Enfim, é substituído. Mas demora-se ao sair. “Mexa as pernas, ó palhaço”. Benfica no ataque, juiz marca fora de jogo. “Abras osch olhosxh, ó cralho. Cabrão. Mas é meschmo filho de uma grande puta, ó pá. Fuodasch”. Mais de 45 do segundo tempo, até que o serelepe fiscal de linha que corre aqui bem perto, vê uma mão na bola e não tem dúvida: corre para o linha de fundo, é pênalti para o Benfica. Loucura total, fuodasch em alegria. O médio estadosunidense Freddy Adu cobra e marca o golo de empate. O rapaz pula, fica na frente, depois se desculpa. “Somos assim meschmo é a êmução”.
Fim do jogo, vamos à disputa de cobranças diretas da marca do pênalti. Maurício brasileiro, aquele do golo do Amadoira, vai cobrar a primeira. É justamente na baliza aonde estão os encarnados, sempre a gritar. Enfurecidos, ensandecidos como guerreiros lutando em uma zona de conflito, agora disparam para o jogador do time da casa, em uma derradeira tentativa para desestabilizá-lo emocionalmente: “vaisch falhar, vaisch falhar, vaisch falhar!”. Funciona. A bola bate na baliza, sai pela linha de cabeceira, não entra.
As cobranças se sucedem. Luizão, zagueiro da seleção brasileira, bate e faz. Beija o escudo. A torcida o adora. E o Benfica vence. O vendedor de queijadas é só sorriso. A mulher do cachecol e os miúdos vibram ao lado da avó. O rapaz do microfone agradece a presença da claque, volta a gritar Estrela, dá boa noite e parabeniza os benfiquenses. Corre-corre para pegar um táxi – todos Mercedes –, já passa das 23h. Mas ali está a rapariga, aquela abordada pela policial no início da história. Correu o risco e se deu bem. Vê-se pegando de volta o batom, intacto, no parapeito da janela. Outras fazem o mesmo. É hora de voltar para casa sem esquecer que Portugal e Brasil realmente são bem parecidos.

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