Jornal O Globo, 06/07/2008
no tempo do futebol
Ajulgar pelo clima de beligerância entre irmãos cariocas que cercou a final da Libertadores, o ódio está vencendo a irreverência. Tudo bem que o futebol está para a guerra assim como a bossa nova está para o samba. A frase, uma caricatura, sugere que, assim como a batida de João teria “facilitado” o samba aos ouvidos dos não-bambas, a batida do futebol converteu a pulsão natural de guerra numa expressão “aceitável”. Há, contudo, algo mais nas fisionomias de ódio e nos gestos vis que espoucam nos estádios, aqui e lá fora. Na dinâmica da cidade partida ou alhures, preconceitos se disseminam e a violência física vive à espreita, chegando a extremos como o da torcida organizada sérvia que virou unidade paramilitar de direita, como descreve o britânico Franklin Foer no livro “Como o futebol explica o mundo”. Abaixo, os jornalistas Arthur Dapieve e Sidney Garambone e o professor de sociologia Maurício Murad discutem o tema sem precisar partir (ufa!) para as vias de fato. (Arnaldo Bloch).
FREUD NÃO ERA CABEÇA-DE-ÁREA
06/07/2008
Arthur Dapieve
No começo do século XIX, o general prussiano Karl Von Clausewitz escreveu algo quase sempre citado numa versão simplificada, mas não deturpada: “A guerra não é nada mais do que a continuação da política com o acréscimo de outros meios.” Não há muito exagero em parafraseá-lo e dizer que os esportes (e o mais popular deles, em particular) não são nada mais do que a sublimação da guerra pela subtração de alguns meios.
Exemplos abundam. A centenária rivalidade entre os times do Real Madrid e do Barcelona espelhando a tensão entre a Espanha e a Catalunha. A heróica recusa do Dínamo de Kiev em perder um jogo armado para abrilhantar a Alemanha nazista. O formidável Honved excursionando pelo mundo como garoto-propaganda do comunismo húngaro. A guerra literal entre El Salvador e Honduras por causa das eliminatórias da Copa de 70.
A idéia de que o futebol é jogado num terreno a-histórico se sustenta tão pouco de pé quanto o Jorge Henrique, ponta cai-cai do Botafogo. Como qualquer produto cultural, o esporte ritualiza a sociedade da qual faz parte. Portanto, não são algumas torcidas européias que são, isoladamente, racistas. Elas representam setores racistas de seus países, ora. Temos problemas similares nos primórdios do nosso football e, ainda hoje, no Sul. As maiorias, sejam políticas, étnicas, religiosas ou futebolísticas, desenvolvem tendências totalitárias.
Aqui, a violência dentro e em torno dos gramados não é uma invenção do futebol, a despeito do que vendem as periódicas “campanhas educativas”. Pacifiquem a sociedade, baixem as taxas de homicídios, eduquem os agentes da repressão, tirem de circulação os motoristas camicases — e os estádios tornar-se-ão mais seguros para se trabalhar e para se divertir. Simples assim? Claro que não, a vitória nunca será total. O homem sempre terá a pulsão de destruição, já dizia Freud, que não, não era cabeça-de-área no Rapid de Viena.
Arthur Dapieve é jornalista e escritor
Quem seca o próximo vira massa de manobra
Sidney Garambone
Não vem ao caso por qual time tremula meu coração. Mas a final do Flu- Ldu deu-me uma certeza. Jamais secarei um time brasileiro num torneio internacional. E olha que já sequei muito. Porém, não gostei do que vi. Em vez da troça, a pequeneza. Em vez da gozação, a humilhação de vestir a camisa de um arrivista time equatoriano apenas pelo prazer de caçoar do vizinho tricolor. Em vez da democracia e da brincadeira, testemunhei a intolerância dos discursos rancorosos. Em vez do elogio aos espetáculos inesquecíveis no Maraca, ouvi mentiras e desdém. E me assustei.
Antes, porém, ponho minha hipocrisia para escanteio. É notório que rivalidades radicais inspiram este sentimento secular de secar o próximo. Quantas vezes os secados tricolores cantaram “silêncio na favela” para os rubro-negros? Ou “silêncio no canil” para botafoguenses? Ou tripudiaram da horrível derrota do Fla para o América do México?
Só que, a cada jogo desesperado vencido pelo Flu, alguns rancores se dissipavam, a emoção vencia e vários “rivais” abraçavam a causa carioca-brasileira. Fora do Rio, li textos de alguns são-paulinos derrotados enaltecendo o Onze das Laranjeiras. Guardei jornais argentinos rendendo-se à magia verde, branca e grená depois da derrota do Boca. Espécie de solidariedade na catarse. De uma hora para a outra, ser vanguarda era torcer pelo Flu.
Mas alguns optaram pelo velho hábito. E, sem perceber, propuseram a reflexão traduzida no parágrafo do jornalista não-tricolor Emanuel Castro, também com a alma ferida por tanta cegueira espiritual: “A felicidade dos amigos me fará uma pessoa melhor. Torcer pela felicidade do outro é resistir à desagradável competição como a conhecemos no mundo contemporâneo. Se eu não sou feliz, ninguém o será.”
O futebol é a guerra sem mortos entre dois lados. A Eurocopa não deixou milhões de mortos como as Grandes Guerras e foi disputada, palmo a palmo, entre nações hostis dentro de um estádio. A derrota de um não significava a vitória do outro, mas um desafio: que se prepare, seja capaz de vencer a próxima e ouça as palmas do outro lado da cerca.
Na fatídica madrugada eterna de quarta-feira, vi botecos empilhados de rubro-negros, vascaínos e botafoguenses. Comemoravam. Como se tivessem parentes equatorianos. Nem lembravam que este mesmo Equador eliminou jovens promessas brasileiras, no Pan. Os secadores do planeta, ingênuos, não percebem ser massa de manobra dos que cultuam o ódio. Pena que o profeta Gentileza não exportou seu grafite mundo afora. Gentileza gera gentileza. E vice-versa.
Será que o futebol, como dizem os poetas, é mesmo um espetáculo? Onde está a beleza do ódio racial, do preconceito de classe, da homofobia e da xenofobia? A onda de cânticos sem palavrões, a princípio tratada com deboche, mostrou-se vitoriosa e colaborou na volta de muita gente aos estádios. Cabe aos torcedores, jogadores e imprensa proteger o futebol não só da violência de fato, mas da manipulação exercida pelos nossos próprios corações, onde o ódio é titular e o amor senta no banco.
Por isso, a maior das vinganças tricolores seria, num futuro próximo, torcer para Fla, Vasco e Botafogo durante uma hipotética Libertadores. Sem Flu-Bocas, LDFlu ou demais trocadilhos medíocres. E deixar nos secadores, hoje vitoriosos, caras de bobo eternas por terem sido tão infantis. “Eu tenho, você não tem. Eu tenho, você não tem.” Como aliás, os próprios tricolores já foram um dia. Bobos. Somos. Todos.
Sidney Garambone é jornalista e escritor
Boniteza e Perdição
Maurício Murad
“Sofremos mais com as opiniões que temos dos fatos do que com os próprios fatos”, escreveu Montaigne. A violência no (e não do) futebol é um exemplo deste pensamento. Ela ainda é obra de minoria e, se cresce ali, decresce lá.
Paixão e patrimônio, o futebol é reverenciado em todo o mundo e, a duras penas, via LDU, descobrimos que no Equador também. Muitas vezes, o que deveria ser prazer e alegria vira pesadelo, quando a violência assume o papel principal desse teatro que representa a vida em sociedade, suas raízes, contradições, dilemas, e a vibração do torcedor fica à mercê dos seguidores da covardia, da exclusão, do racismo, da homofobia.
São grupos minoritários, mas perigosos, por vezes articulados ao crime e ao tráfico. Muitos nem torcedores são, ficam de costas para o campo, durante os jogos, provocando, se exibindo. Dizem que não gostam de futebol. Já desconfiávamos...
Torcida é outra coisa. É “boniteza”, disse Ariano Suassuna. Adversário não é inimigo e futebol não é guerra. Esta pressupõe a eliminação do “outro”. O esporte, por definição, é a manutenção do “outro”. A divisão entre vencedores e vencidos pode gerar violências, mas isso não é só no futebol e para isso foi inventada a “civilização”: leis, limites, respeito. Bem ou malsucedida, a civilização existe e deve fazer valer seus valores.
Um estádio não é uma perdição, onde só há transgressões. Quem freqüenta sabe. Neste caso, a realidade é melhor que a fantasia. Claro que há práticas violentas e até mortes e pior: 78% dos óbitos são de torcedores pacíficos, de acordo com pesquisa Uerj/Universo, 1998/2008. É grave, mas é menor que a violência no trânsito, nas escolas, contra homossexuais e mulheres. Isto não absolve, mas melhora (para citar de novo Montaigne) a opinião que temos dos fatos.
Mauricio Murad é sociólogo da Uerj e da Universo e autor de “A violência e o futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje”, FGV, 2007.
terça-feira, 8 de julho de 2008
FREUD NÃO ERA CABEÇA-DE-ÁREA
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